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'Falta responsabilidade aos Estados europeus'

Para a diretora-executiva da ONG Médicos Sem Fronteiras no Brasil, falta na União Europeia uma política única para lidar com o grande fluxo de imigrantes que chegam ao continente

Por Renata Tranches
Atualização:

Para a diretora-executiva da ONG Médicos Sem Fronteiras no Brasil, Susana de Deus, falta na União Europeia uma política única para lidar com o grande fluxo de imigrantes que chegam ao continente por terra ou por mar e ajudar seus países-membros, especialmente a Itália. Na semana passada, a ONG anunciou que não assinaria um Código de Conduta proposto pelas autoridades italianas para agir no Mediterrâneo, que na avaliação da organização considera prejudicial à sua atuação. Veja principais trechos da entrevista ao Estado.

Apesar da insegurança persistente, a Líbia continua a ser um importante local de trânsito para imigrantes Foto: Stefano Rellandini / Reuters

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Por que algumas ONGs decidiram não assinar o código de conduta italiano?  São várias as razões, mas eu destacaria entre elas o fato de esse código dificultar a transferência de pessoas resgatadas de uma embarcação para outra. Isso significa que os pequenos barcos que resgatam as pessoas teriam de levá-las de imediato à costa italiana. 

Como funciona hoje esse resgate? Um barco menor leva para um maior?  Isso. Às vezes, em um espaço não tão vasto e no qual existem várias embarcações (de imigrantes), às vezes, não tem como tirar todas essas pessoas em segurança. O que estamos fazendo é transferir esses imigrantes para embarcações menores para depois levá-los para navios. Isso faz com que haja uma maior celeridade no resgate das pessoas e se diminua o número de afogados. Esse código agora pressupõe que essas pequenas embarcações resgatem e levem as pessoas até a costa italiana imediatamente. Nesse tempo, eles poderiam estar resgatando mais pessoas. Esse é um dos problemas. 

Quais seriam os outros? Outra questão que nos preocupa é que existe uma vontade de se colocar autoridades armadas ou polícia dentro dos barcos. Isso vai totalmente contra os princípios do Médico Sem Fronteiras de imparcialidade, neutralidade, independência. Em nenhuma instalação do MSF nós permitimos que entrem pessoas armadas. Não está muito claro, mas pressupõe-se também que os profissionais humanitários participem das investigações com essas autoridades. Ora, essas embarcações estão ali para salvar vidas, não para participarem de processos judiciais ou apoiando as autoridades a investigar essa ou aquela razão pela qual as pessoas embarcaram. Há um risco de se confundir papéis. A prioridade do MSF é salvar vidas imediatamente ali no Mediterrâneo Central. 

Quantas ONGs fazem esse trabalho no Mediterrâneo e quantas não assinaram o código?  Quatro de oito organizações que fazem busca e resgate no Mediterrâneo Central assinaram o código. Mas é importante salientar que não são apenas as ONGs que estão resgatando pessoas no Mediterrâneo. As ONGs resgatam menos que as autoridades ou Marinha italianas. Estamos ali para apoiar porque falta uma política exclusiva para essa questão do resgate de pessoas. 

Falta então uma política única para lidar com esse fluxo que chega por mar e também por terra na União Europeia?  É isso mesmo o que está faltando. É responsabilidade dos Estados europeus manter e fornecer os recursos adequados para salvar a vida dessas pessoas. Esses Estados precisam ter uma política única porque a União Euroeia não está sendo proativa para não deixar que as pessoas morram nas suas costas. Na realidade, o Estado italiano tem sofrido bastante essas consequências porque está sozinho e a UE não está apoiando a Itália com uma política mais partilhada para apoiar essa população que está vindo pedir ajuda à Europa. 

Um dos argumentos do governo italiano é de que algumas ONGs estariam ali como fachada para grupos de tráfico de pessoas. O que a sra. sabe sobre isso?  Não temos esses relatos, e já estivemos reunidos com representantes da Frontex que também nos falou que houve aí alguma confusão na interpretação quando essa informação veio a público. Não temos conhecimento desse tipo de ação. Tudo isso que está acontecendo é mais uma vez uma prova de uma falha grande das políticas da União Europeia que não fornecem alternativas adequadas para assegurar que essas pessoas que estão fugindo de miséria, de guerras, de perseguição não morram na grande vala que se tornou nesse momento o Mediterrâneo Central. A União Europeia opta por outras estratégias que tem mais a ver com a segurança das suas fronteiras do que em assegurar que não morram as milhares de pessoas nas costas europeias. 

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O que a sra. achou das iniciativas propostas até agora pela UE?  Nos preocupa bastante essa estratégia proposta pelo governo italiano e da UE para conter imigrantes e refugiados na Líbia. Estão sendo feitos treinamentos das autoridades na Líbia para conter essas pessoas. Isso nos parece completamente irresponsável, não compreendemos como é que se pense em fazer uma coisas dessas. Todos sabem o que acontece na Líbia. Não é um Estado com condições mínimas para para abrigar essas pessoas que estão vindo de outros países, pelo contrário. Temos relatos de muitos pacientes que foram mal-tratados, violentados, desde a violência sexual ou outros tipos de violência, trabalho forçado, entre outros. É um Estado que está em colapso nesse momento. É inacreditável como ainda se pense que essa população tenha de ficar na Líbia quando se sabe o que está acontecendo lá. Ou morrem no Mediterrâneo ou são jogadas em armazéns na Líbia. 

A proibição na venda de barcos ou motores de barcos ajuda em algo?  Não faz muito sentido. Essa é uma rota comercial muito importante. As pessoas já passam mal economicamente e agora porque alguns ainda têm a coragem de se atirar ao mar para tentar uma vida melhor em outro lugar, outros acabam também por não poder retirar do mar sua subsistência. Existem alguns disparates sendo feitos apenas pela ânsia de segurar as fronteiras. 

Recentemente, o barco de uma ONG alemã foi apreendido. Por que?  Não temos informações sobre esse caso. Todas as ações que sejam feitas no sentido de prejudicar a missão de salvar vidas por parte das organizações que estão cumprindo a legislação, não são bem-vindas, porque estamos fazendo o papel dos Estados. O que gostaríamos é que a UE tivesse uma política exclusiva de resgate pró-ativa porque a MSF e outras organizações não estariam no Mediterrâneo.

Houve uma negociação entre as ONGs e o governo italiano sobre o código de conduta?  Sim, o MSF teve sim uma oportunidade de conversar com as autoridades italianas com relação a esse código e propusemos alguns pontos, colocamos outras questões que nos preocupavam, mas a ação tal como as autoridades italianas propuseram foi a que prevaleceu.

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As ONGs têm conversado entre elas sobre o próximo passo?  Sim, com certeza, estamos conversando, mas nesse momento não posso dar mais informações. Há troca de informações entre as organizações, há vários atores preocupados. Atores que estão ali dia a dia fazendo o máximo no Mediterrâneo. 

Quantas pessoas já foram resgatadas este ano?  Até julho de 2017 já morreram cerca de 2.385 pessoas no Mediterrâneo. Já foram resgatadas 16 mil pessoas. Resgatamos jovens rapazes, muitas mulheres grávidas, crianças, todos os tipos de população. É uma tragédia que se mantém sem dar sinais de uma atitude diferente por parte da UE. 

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