Famílias Bachelet e Matthei voltam a lados opostos, 40 anos após golpe no Chile

Michelle, filha de vítima da ditadura, ex-presidente enfrenta no voto filha de acusado de tortura

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Atualização:

Roberto Simon

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ENVIADO ESPECIAL / SANTIAGO

Para o veterano da Força Aérea chilena Ernesto Galaz, a disputa presidencial em seu país – polarizada entre a ex-presidente Michelle Bachelet e a candidata da centro-direita, Evelyn Matthei – tem um significado especial. Após o golpe de 1973, Galaz virou companheiro de cela do pai da ex-presidente, brigadeiro Alberto Bachelet, e com ele foi torturado na Academia da Força Aérea, comandada por Fernando Matthei, pai de Evelyn.

As duas mulheres que disputarão em novembro a presidência se conheceram quando meninas, filhas de oficiais do alto escalão de uma força militar orgulhosa de ter deixado, nos anos 30, de se imiscuir na política – ao contrário dos demais colegas de farda do Cone Sul. No entanto, os anos de Salvador Allende e depois o golpe que este mês completa quatro décadas colocaram as famílias em lados opostos.

O tema é espinhoso para ambas as candidatas. Michelle nega que o brigadeiro Matthei tenha tomado parte ou soubesse das atrocidades cometidas contra seu pai na instalação que comandava. Galaz tem outra versão.

"Eu e Bachelet estávamos sob custódia da Justiça Militar e o brigadeiro Matthei não tinha autoridade sobre eles. Mas tudo ocorreu em um porão da instalação que ele comandava. Ele comia com os nossos torturadores. Você pode imaginar uma pessoa sendo torturada na sua casa e você nem desconfiar de nada?", questiona o tenente-coronel da reserva, hoje um octogenário de voz trêmula e vida modesta no bairro de La Reina, subúrbio de Santiago. "Matthei foi, no mínimo, cúmplice da tortura que sofremos." Bachelet morreu em 1974 e sua família recolheu-se ao exílio. Matthei tornou-se ministro de Augusto Pinochet e, ao final, integrante da junta militar.

Em 1973, Galaz trabalhava no Estado-Maior da Força Aérea, no prédio onde seria articulada a conspiração contra Allende, e lecionava geopolítica, logística e inteligência na escola de oficiais. O tenente-coronel não tinha vínculos partidários, mas nas aulas que ministrava ficavam claras suas afinidades com o projeto político do governo da Unidade Popular (UP).

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Uma semana antes do golpe, Galaz recebeu uma tarefa estranha: acompanhar uma delegação esportiva em Arica, na fronteira com o Peru. Ele voltou à capital em 10 de setembro à noite e, no dia seguinte, foi acordado pelo filho com a informação de que a tropa se insurgira em Valparaíso e aviões começavam a bombardear antenas.

A primeira reação de Galaz foi se esconder. "Não me apresentaria ao serviço em meio a um golpe." Três dias depois, com Allende morto e o poder nas mãos dos conspiradores, reapareceu para trabalhar e acabou preso em seu escritório. Foi no subterrâneo do prédio que o oficial viu pela primeira vez o brigadeiro Bachelet, que chefiava a estratégica Direção Nacional de Abastecimento e Comercialização (Dinac) do governo Allende, entidade que buscava organizar a distribuição de produtos básicos. Um jovem oficial interrogou os dois superiores para saber por que eles não haviam aderido à conspiração. Bachelet, com problemas cardíacos, foi a um hospital militar e Galaz, para uma base aérea.

"Nós nos reencontramos na Academia da Força Aérea, comandada por Matthei, dias depois, quando começaram as torturas e as aberrações", relembra. O Brasil era o principal país da região a apoiar os golpistas no Chile e as atrocidades cometidas contra presos políticos chilenos tinham nomes como "pau de arara", "submarino" e "telefone" – os mesmos das masmorras do DOI-Codi e em outros centros de repressão brasileiros.

Galaz foi afogado, teve agulhas enfiadas sob as unhas, tomou choques no pênis, ânus, orelhas, boca e nariz, e foi agredido a bastonadas nos testículos. "Quem fazia isso eram nossos colegas e subalternos. Energúmenos que viam em mim um inimigo, um delinquente. Um deles tinha sido meu colega como professor", lembra.

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Da Academia da Força Aérea, o tenente-coronel e Bachelet foram levados a uma prisão comum de Santiago, onde dividiam uma cela com outros 12 oficiais. Um dia, enquanto lavava a louça no cubículo, o brigadeiro voltou a se sentir mal. Um oficial médico que também ocupava a cela o examinou e, em seguida, implorou ao carcereiro para que ele fosse levado um hospital. Quando chegou ao centro médico, Bachelet estava morto.

Acusado de alta traição, Galaz foi sentenciado à morte por um Tribunal da Força Aérea. Diante da pressão internacional sobre o Chile, a cúpula da Justiça Militar não confirmou a sentença. "A família de um dos juízes tinha passado pelo Holocausto na Alemanha e ele entendeu o que estava acontecendo no Chile. No final, recusou-se a me mandar ao paredão para ser fuzilado."

Dois anos depois, Galaz foi para o exílio na Europa, onde passou a trabalhar para o Partido Socialista do Chile, o mesmo que Michelle levou ao poder em 2006. Assim como a ex-presidente, ele viveu na então Alemanha Oriental como refugiado. Mas Galaz sente-se ofendido com a posição conciliadora da candidata diante do passado que veio à tona na disputa com Evelyn Matthei. "Dizer que o pai de Evelyn não sabia nada do que estava acontecendo conosco é um abuso moral de nossa história. É um abuso contra o que eu e esse país sofremos."

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