Beneficiados pela maré de crescimento econômico mundial, vários presidentes estão aproveitando seus elevados índices de popularidade para deixar de lado um dos pilares da democracia - a alternância de poder - e apostar no continuísmo. Fortalecidos politicamente, o limite da reeleição já não satisfaz e muitos deles estão recorrendo a todo o tipo de manobra para assegurar o direito a um terceiro mandato. O fenômeno é comum em países em desenvolvimento marcados por dois fatores: são democracias incipientes, ou sem instituições sólidas, e atravessam pela primeira vez um período de estabilidade econômica. O venezuelano Hugo Chávez foi um dos primeiros a introduzir o tema na agenda interna. Nos últimos meses, os governos de Colômbia, Argentina, Bolívia, Rússia, África do Sul e até do Brasil também incluíram o terceiro mandato no debate político. "A proposta tem tido acolhida porque esses líderes estão se aproveitando da excelente conjuntura econômica para consolidar apoio popular e arrumar um jeito de permanecer no poder", afirmou ao Estado, por telefone, o cientista político argentino José Natanson, chefe de Redação da revista Nueva Sociedad. A dificuldade de encontrar um sucessor tornou-se um argumento forte para que alguns mobilizassem sua base política em favor do continuísmo, como é o caso de Thabo Mbeki, da África do Sul, e do colombiano Álvaro Uribe. O brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, que de início fez vista grossa aos balões de ensaio lançados por sua base de apoio em relação ao terceiro mandato, enterrou de vez o assunto na semana passada. Na África do Sul, Mbeki encontrou uma solução criativa. Depois que percebeu que o lobby por mais um mandato não venceria as resistências internas, Mbeki teve a idéia de lançar-se candidato a um terceiro mandato como presidente do Congresso Nacional Africano (CNA), partido que comanda o país desde 1994. Como é o CNA que determina a agenda política do país, Mbeki continuaria comandando a África do Sul dos bastidores. "Se isso acontecer, ele deixará o próximo presidente numa situação difícil", disse o cientista político sul-africano Hennie van Vuuren, do Instituto de Estudos de Segurança, de Cidade do Cabo. O russo Vladimir Putin encontrou uma saída absolutamente dentro da lei para continuar governando o país. Putin anunciou que vai apoiar um candidato de sua confiança à sucessão presidencial e candidatar-se a uma cadeira de deputado na Duma (Câmara Baixa) - o que o credenciaria ao cargo de primeiro-ministro, pois lidera uma coalizão amplamente majoritária no Parlamento russo. Em caso de renúncia do presidente, a Constituição russa prevê que o premiê deve assumir, o que torna o terceiro mandato de Putin apenas uma questão formal. O argentino Néstor Kirchner foi ainda mais ousado. Abriu mão da reeleição em favor da mulher, a senadora Cristina Fernández de Kirchner, com a clara intenção de voltar em 2012 ou 2016. "A eleição de Cristina foi uma manobra de Kirchner para manter-se no poder", disse o cientista político Christian Lohbauer, do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo. "E trata-se de uma estratégia vitoriosa feita dentro da legalidade." ?HECATOMBE? COLOMBIANA No caso da Colômbia, as eleições presidenciais só estão marcadas para 2010, mas o debate sobre a possibilidade de mais um mandato de Uribe já começou. O presidente colombiano admitiu que poderia candidatar-se mais uma vez caso ocorresse uma "hecatombe" no país. Segundo assessores, "hecatombe" seria a falta de um candidato forte dos governistas para sucedê-lo. Os oposicionistas respondem por meio de um discurso comum a todas as oposições quando o assunto é o terceiro mandato: acusam o presidente de ter um plano para perpetuar-se no poder. Para concorrer novamente, Uribe teria de promover mais uma reforma na Constituição colombiana, que já foi modificada para incluir a emenda da reeleição do presidente, em outubro de 2005. Se tiver sucesso na manobra, Uribe entrará para a história do país como o presidente que foi eleito para exercer um mandato e cumprirá três. De acordo com o argentino Natanson, a busca do terceiro mandato é mais presente na América Latina: "Além boa performance econômica da região, os presidentes latino-americanos estão investindo em políticas sociais, o que lhes dá popularidade e confiança para tentar permanecer no poder." O analista venezuelano Carlos Romero, especialista em assuntos internacionais da Universidade Central da Venezuela, enfatiza que o terceiro mandato bate de frente com o princípio de alternância no poder. "Esse modo de fazer política prejudica as democracias latino-americanas, que ainda têm pouco nível de institucionalidade." Para Lohbauer, a busca por um terceiro mandato é um reflexo da fragmentação dos partidos políticos, que não conseguem encontrar um candidato para substituir o atual presidente: "Os grupos partidários concentram toda a atenção na popularidade do presidente, que acaba motivando as legendas a buscarem medidas e propostas para incluírem a segunda reeleição na Constituição desses países." A conjuntura econômica favorável ocorre num período em que a democracia está amadurecendo no mundo inteiro. Até a década de 80, a América Latina e a maioria dos países da Ásia e da África - além da União Soviética e dos países comunistas da Cortina de Ferro - viviam sob ditaduras sustentadas pela Guerra Fria. A democracia floresceu nesses países em um contexto de recessão econômica. Os anos 90 foram marcados por políticas neoliberais que culminaram com a crise da Rússia, em 1997, que se espalhou pelo mundo no ano seguinte. Assim, só na virada do século 21 a maioria desses países passou viver num ambiente democrático e economicamente estável.