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Fervor religioso na Índia testa limites da liberdade de expressão

Maior pintor indiano vive no exílio por causa de seus quadros que retratam deusas hindus nuas

Por Somini Sengupta
Atualização:

Maqbool Fida Husain, o pintor mais famoso da Índia, tem medo de ir para casa. Husain é um muçulmano que gosta de pintar deusas hindus, às vezes retratando-as nuas. Essa obsessão lhe rendeu a ira de um pequeno, mas organizado, grupo de nacionalistas hindus. Eles atacaram galerias que exibem suas obras, o acusaram em tribunal de "promover a inimizade" entre fés e, numa ocasião, ofereceram US$ 11 milhões por sua cabeça. Em setembro, a mais alta corte indiana ofereceu-lhe um alívio inesperado, rejeitando uma das ações contra ele com o lembrete curto e grosso de que a iconografia hindu, incluindo templos antigos, está repleta de nudez. Mesmo assim, o debilitado artista de 93 anos não quer se arriscar. Durante dois anos, ele viveu em Dubai, nos Emirados Árabes, num exílio voluntário. E pretende permanecer lá, ao menos por enquanto. "Eles podem me colocar numa selva", disse Husain, brincando. "Mas ainda posso criar." A liberdade de expressão tem sido, com freqüência, e por algumas avaliações, crescentemente pressionada na Índia numa época em que o país tenta equilibrar os ditames de sua democracia secular com as paixões étnicas e religiosas facilmente inflamáveis de suas multidões. O resultado é uma estranha anomalia numa nação conhecida por sua cultura política vibrante. O governo é compelido a assegurar o respeito pela diversidade da Índia e, ao mesmo tempo, impedir um grupo de agredir outro por alguma suposta ofensa. Para o historiador Ramachandra Guha, talvez este seja "o desafio fundamental de governança na Índia". O surgimento de um tipo de identidade política intensa, com muitas comunidades mobilizando-se pelo poder, ampliou o problema. A acusação de que uma peça de arte é ofensiva é um modo fácil de acirrar os ânimos de uma casta, fé ou tribo determinada, assinala Pratap Bhanu Mehta, um cientista político indiano, que chama isso de "tráfico de ofensas". Houve episódios isolados de violência e ameaças, que com freqüência levaram o governo a invocar leis do período britânico que lhe permitem proibir obras de arte e literatura. A Índia foi um dos primeiros países a proibir o romance Versos Satânicos, de Salman Rushdie. Em março, Taslima Nasreen, uma romancista de Bangladesh que vive no exílio no Estado de Bengala Ocidental, controlado pelos comunistas, foi obrigada a sair da Índia por muitos meses depois que um partido político muçulmano fez objeções a sua obra. Enquanto isso, no Estado ocidental de Gujarat, controlado pelo Partido Bharatiya Janata, nacionalista hindu, um psicólogo especializado em política, Ashis Nandy, foi acusado de "promover a inimizade entre grupos diferentes". Seu delito foi escrever um artigo no jornal The Times of India criticando a vitória dos nacionalistas hindus nas eleições estaduais. O caso está pendente. "Essa política fugiu de controle", argumentou Mehta, o cientista político. "Ela coloca a democracia liberal em risco. Se quisermos a estabilidade social, precisamos de um consenso sobre quais são nossas liberdades." Até mesmo as ameaças de violência de partes ofendidas são um elemento poderoso de dissuasão. Em Mumbai ( antiga Bombaim), onde Husain viveu durante a maior parte de sua vida, uma exposição recente de mestres indianos não incluiu obras suas. O mesmo aconteceu na primeira feira de arte moderna da Índia em Nova Délhi, em agosto - uma pequena mostra com reproduções de obras de Husain foi atacada por vândalos. Do acervo excepcionalmente grande de obras de Husain - pelo menos 20 mil peças, segundo suas estimativas - há três que enfureceram seus adversários. Duas são desenhos a lápis altamente estilizados de Durga, a deusa-mãe, e Saraswati, a deusa das artes, ambas sem rosto e nuas. Husain insiste que a nudez simboliza pureza. Ele repetiu muitas vezes que não pretendia ofender nenhuma fé. Mas um de seus quadros, mostrando um jumento - para o artista, um símbolo de não-violência - em Meca, criou um rebuliço entre seus colegas muçulmanos. Husain considera o atual governo, chefiado pelo Partido do Congresso, demasiado fraco para lhe oferecer proteção dos que poderiam feri-lo. Ele pede, porém, para não exagerarem seu caso. A Índia, insiste Husain, é fundamentalmente "tolerante".

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