Artigo: Fidel, meu amigo

O líder me propôs ajudar o Estado a se reaproximar da Igreja; engana-se quem pensa que a morte dele provocará um furacão na Revolução

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Por Frei Betto
Atualização:

Conheci Fidel em Manágua, na noite de 19 de julho de 1980, primeiro aniversário da Revolução Sandinista. Lula e eu estávamos na casa de Sergio Ramírez, vice-presidente do país; o líder cubano chegou para se encontrar com empresários nicaraguenses. Às duas da madrugada o padre Miguel D’Escoto, chanceler da Nicarágua, indagou se tínhamos interesse em conversar com o Comandante. O diálogo se estendeu até às 6 horas da manhã.

Diante da oportunidade, que julguei única, de conversar com Fidel, priorizei a questão religiosa. Muitos partidos comunistas falharam por professar um ateísmo apologético que os afastou dos pobres imbuídos de religiosidade. 

Fidel e o papa João Paulo II durante histórico encontro no Vaticano Foto: Vaticano

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Fidel traçou um longo histórico da Igreja em Cuba, acentuou o caráter franquista do clero anterior à Revolução e os conflitos ocorridos à raiz da vitória dos guerrilheiros de Sierra Maestra, em 1959. “Comandante, qual é a atitude do governo cubano frente à Igreja?” – perguntei-lhe. E acrescentei: “A meu ver, há três possibilidades: a primeira, tentar acabar com a Igreja e a religião. A história demonstra ser impossível, e tal postura ajudaria a reforçar a campanha dos que insistem numa ontológica incompatibilidade entre cristianismo e socialismo. A segunda, manter Igreja e cristãos marginalizados, o que favoreceria a política de denúncia de que nos países socialistas se desrespeita a liberdade religiosa. A terceira, abertura aos cristãos interessados em participar da construção do socialismo. Qual das três o governo cubano assume?”

“Nunca havia encarado a questão nesses termos” – admitiu Fidel –, “mas a terceira me parece mais sábia. Você tem razão, devemos buscar um melhor entendimento com os cristãos, superando qualquer forma de discriminação.”

Indaguei-lhe ainda por que o Estado e o PC cubanos eram confessionais. Ele estranhou: “Como confessionais?” Expliquei que afirmar ou negar a existência de Deus é ignorar uma das conquistas da modernidade: o caráter laico do Estado e dos partidos. Pouco depois, Estado e PC cubanos deixaram de ser oficialmente ateus e passaram a laicos.

O líder cubano me propôs ajudar o Estado a se reaproximar da Igreja Católica. Há anos ele não se encontrava com nenhum bispo católico, malgrado suas boas relações com a embaixada do Vaticano em Havana e as Igrejas protestantes. No ano seguinte, o episcopado de Cuba aceitou-me como intermediário na reaproximação Igreja-Estado, tarefa que desempenhei entre 1981 e 1991.

Em fevereiro de 1985, em Havana, voltei ao tema religioso. Desta vez, Fidel deu longo depoimento sobre a sua formação católica na família e nas escolas de lassalistas e jesuítas. Indaguei se estaria disposto a repetir o que me revelara numa entrevista. Assentiu e acertamos fazê-la em maio daquele ano.

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Desembarquei na data combinada; coincidiu com o início das emissões, desde Miami, da Rádio Martí. Fidel escusou-se, disse que a nova conjuntura o impedia de conceder tempo à entrevista. Senti-me como o pescador de O Velho e o Mar, de Hemingway. Tinha o tubarão na ponta da linha e não deveria deixá-lo escapar. Tanto insisti que ele cedeu: “Amanhã iniciamos”. Foram 23 horas repartidas em quatro conversas; resultaram no livro Fidel e a Religião, onde ele reitera o direito à liberdade religiosa. Vendeu cerca de 1,3 milhão de exemplares em Cuba e saiu publicado em 32 países e 23 idiomas. 

Em 1986, desembarquei em Havana com uma caixa com 100 exemplares da Bíblia, em espanhol. Esvaziou rapidamente, tantos os pedidos de cristãos e comunistas. À tarde, encontrei Fidel. Contei-lhe das Bíblias; perguntou: “Não sobrou nenhuma para mim?” Dediquei-lhe a única que me sobrava. Ele indagou: “Onde está o Sermão da Montanha?” Apontei-lhe as versões de Mateus e Lucas. Leu-as e falou: “Qual das duas você prefere?” “A de Lucas”, respondi, “porque além das bem-aventuranças enumera também as maldições.” Fidel refletiu por um momento e reagiu: “Discordo. Prefiro a de Mateus, é mais sensata.”

Retornei a Havana em janeiro de 1989 em companhia de Lula e da comitiva que acompanhava o pré-candidato à presidência da República. O embaixador Ítalo Zappa, do Brasil, convidou-nos a uma feijoada noturna. Preparávamos para sair, por volta de 20 horas, quando Fidel apareceu. Preocupava a ele o modo como Gorbachev comandava a Glasnost.

A conversa se estendeu até 22 horas, quando, em consideração ao embaixador, me senti na obrigação de interrompê-la. Fidel, que ignorava o convite, lamentou ter nos prendido por tanto tempo. Sugeri que nos acompanhasse. “Ora, Betto, acha que posso me meter numa embaixada sem ser convidado?” “Mas o convite parte de quem banca o jantar”, repliquei, “nós, os contribuintes brasileiros”. “Isso me convence”, reagiu o líder cubano. Ao chegarmos à embaixada, o jantar havia terminado. Mas a surpresa da presença de Fidel, e a busca por sobras, fez com que todos ficássemos conversando na cozinha até a madrugada. 

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Em março de 1990, Fidel esteve no Brasil, por ocasião da posse de Fernando Collor. Em São Paulo, levei-o a um encontro com mais de mil líderes de Comunidades Eclesiais de Base. Encerramos com cânticos litúrgicos e todos, de mãos dadas, oramos o Pai-Nosso. O comandante me apertou a mão e, embora seus lábios não se movessem, tive a impressão de vê-lo sensibilizado.

Em 1998, logo após João Paulo II despedir-se de Cuba, Fidel convidou um grupo de teólogos para almoçar no Palácio da Revolução. Estava feliz com a visita papal e sinceramente afeiçoado ao pontífice. Um teólogo italiano criticou o fato de João Paulo II presentear a Virgen de la Caridad com uma coroa de ouro, cujo valor poderia ter sido revertido em prol de medicamentos para crianças. Fidel reagiu enfático em defesa do papa e deu ao teólogo uma lição sobre a importância da padroeira de Cuba na religiosidade popular.

Enganam-se aqueles que olham para Cuba à espera de que a morte de Fidel produza um breve furacão político, capaz de destruir a revolução. A ilha não foi atingida pelo efeito dominó provocado pela queda do Muro de Berlim por adotar um modelo socialista singular, mais centrado em direitos sociais, como educação e saúde, elogiados por João Paulo II, e respaldado pelas raízes intelectuais da “cubanidade”, como Félix Varella e José Martí. 

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Tudo indica que o futuro de Cuba reside no socialismo. O desafio é saber reinventá-lo.FREI BETTO É ESCRITOR, AUTOR DE ‘A MOSCA AZUL - REFLEXÕES SOBRE O PODER’ (ROCCO), ENTRE OUTROS LIVROS

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