Fim das Farc e fuga do regime chavista invertem fluxo migratório entre países

Pressionados por fome, miséria e desemprego, venezuelanos são responsáveis pela maior onda migratória da Colômbia, país que historicamente expulsou seus cidadãos em razão do conflito com a guerrilha e agora reduz índices de violência

PUBLICIDADE

Por Bogotá
Atualização:

Há três meses, centenas de venezuelanos se juntam dois dias por semana em uma praça de Cúcuta para saciar a fome com que chegam à maior cidade colombiana de fronteira. Eduardo Espinel, empresário venezuelano de 30 anos, traz marmitas para a legião de compatriotas responsável pela maior onda migratória da história da Colômbia, país acostumado a afugentar cidadãos em razão da guerra que agora acaba.

A freira brasileiraTeresinha recebe e ajuda os venezuelanos que chegam ao centro de imigrantes em Bogotá Foto: Santiago Torrado

PUBLICIDADE

A fuga do chavismo, associada ao fim das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), inverteu a tendência histórica do fluxo migratório entre dois países, que dividem 2.219 quilômetros de fronteira. Os colombianos costumavam migrar para a “Venezuela Saudita”, que desfrutava da riqueza proveniente do petróleo nos anos 70. Na década de 90 e início deste século, fugiram dos horrores do conflito armado entre Estado, guerrilheiros e grupos paramilitares. A estimativa mais conservadora é que 1 milhão passaram à Venezuela.

Agora são os venezuelanos que fogem da violência. Quando, por telefone, ameaçaram Espinel se não pagasse uma “vacuna” (vacina), gíria para extorsões, ele fugiu “da cidade mais perigosa do mundo”, sua definição para Caracas. Fixou-se em Cúcuta, onde tem dois restaurantes de comida venezuelana, chamados Don Cachapa. 

Antes de matar a fome na praça de Cúcuta, os imigrantes entoam o famoso “glória ao bravo povo”, hino da Venezuela, rezam e fazem um minuto de silêncio pelos caídos nos protestos contra o governo de Nicolás Maduro. “Não só ofereço um prato de comida, mas também uma mensagem de alento, para que fiquem alerta, que não percam o sentido da sua nacionalidade”, disse ao Estado. Além da comida, ele lhes dá orientação e faz doações de roupa e remédios. O trabalho social tem sentido em uma cidade que é a primeira etapa do crescente êxodo de venezuelanos que chegam às grandes cidades da Colômbia. 

Em Medellín, Barranquilla ou Bucaramanga, o sotaque venezuelano é ouvido com força. Em Cartagena, na costa norte, mais de uma centena de mulheres chegaram este ano, desnutridas, para dar à luz. Mas cerca da metade dos venezuelanos tem como destino final Bogotá, capital que está a mais de 500 quilômetros e 12 horas de estrada da fronteira. 

Muitos chegam sem dinheiro nem teto à rodoviária da capital e seu primeiro contato é com o pessoal da Fundação de Atenção ao Migrante (Famig) da arquidiocese de Bogotá, dirigida pela religiosa Teresinha Monteira, originária de Santa Catarina e membro das irmãs scalabrinianas. A Famig assessora e oferece casa por poucos dias para todo o tipo de migrante, sejam estrangeiros ou da região, mas atualmente oito a cada dez que chegam ao terminal rodoviário são venezuelanos, explica a irmã. 

Cerca de 50 mil venezuelanos têm documento de estrangeiro colombiano, mais de 300 mil estão registrados com intenção de permanecer e há uma população flutuante de mais de 455 mil nas zonas de fronteira, segundo a autoridade migratória colombiana. Alguns observadores acreditam que há mais de 1 milhão de venezuelanos na Colômbia, mas nessa estimativa há colombianos que viviam do outro lado da fronteira ou descendentes com dupla nacionalidade. Como referência precisa do fluxo recente, entre 1.º de janeiro e 26 de abril entraram 8,3 milhões de venezuelanos na Colômbia e saíram 7,8 milhões. Uma diferença de 449 mil em menos de quatro meses.

Publicidade

Sobrecarga. Os desafios são consideráveis. Só nos hospitais de Cúcuta o atendimento aos venezuelanos aumentou 50% no primeiro trimestre, situação que pode fazer transbordar o sistema de Saúde. O defensor do povo (autoridade do Estado que garante os direitos contra abusos cometidos pelas autoridades), Carlos Negret alertou na semana passada que a Colômbia não está preparada e pediu ajuda internacional para atender os venezuelanos se a crise no país vizinho se agravar. 

Diante desse fluxo, as autoridades locais de várias cidades colombianas apressaram-se em culpar os imigrantes pelo desemprego e a insegurança. Rodolfo Hernández, prefeito de Bucaramanga (a 4 horas de carro de Cúcuta) disse em maio que a sua cidade estava se enchendo de indigentes e prostitutas venezuelanos. 

E o ex-vice-presidente Germán Vargas Lleras, um dos favoritos para as eleições presidenciais de 2018, iniciou uma cruzada de insultos ao regime chavista, advertindo durante uma entrega de casas que não eram para os “venecos”. “Não podemos descambar para a xenofobia”, alertou o presidente Juan Manuel Santos, o que foi corroborado pela Organização Internacional para a Migração (OIM), que lembrou que antes a tendência era no sentido contrário. 

Maduro, contra todas as evidências, afirmou várias vezes este ano que são os colombianos que vêm afluindo em massa para a Venezuela, “pressionados pela fome, a miséria, a violência e o desemprego”, rejeitando tanto a crise venezuelana quanto a redução da violência do outro lado da fronteira após o acordo de paz firmado com a guerrilha mais antiga da América Latina. 

Aleidis voltou à Colômbia em busca de trabalho após 17 anos na Venezuela Foto: Santiago Torrado

Aleidis Otálra, migrante de 24 anos recém-chegada a Bogotá, é um bom exemplo dos laços emaranhados da fronteira. Sua avó venezuelana casou-se com seu avô colombiano e viveram décadas na Colômbia até que em 2000, diante do flagelo da guerrilha, sua avó retornou a Táchira, Estado venezuelano que faz fronteira com Cúcuta, para morar com os filhos e a neta. Aleidis estudou desenho gráfico na universidade, mas nunca exerceu a profissão, pois se mudou para Puerto La Cruz, do outro lado da Venezuela, onde trabalhou em restaurantes e cruzeiros. 

Graças a esses empregos não sentiu a escassez de alimentos, mas foi vítima frequente de assaltos. Depois de viver 17 anos na Venezuela, Aleidis decidiu gastar suas economias em uma passagem de ônibus para Bogotá para conseguir um trabalho que lhe permita enviar dinheiro para a mãe e seu filho de 9 anos que ficaram em Táchira. Na primeira semana, andou de um lado a outro em busca de emprego. Ela só possui documentos venezuelanos e não tem onde dormir.

“Aqui com o salário mínimo pelo menos você pode comprar um café e um pão. Lá não, porque não se consegue pão nem café.” Quando perguntam se ela sente colombiana ou venezuelana, Aleidis pensa um pouco antes de responder: “Acho que ainda estou buscando um lar”. 

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.