Forças russas agora são modernas e mais letais

Putin não poupou esforço para diminuir a distância de seu arsenal para os armamentos do Ocidente 

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Por Anton Troianovski e Michael Schwirtz
Atualização:

Nos primeiros anos de Vladimir Putin como presidente da Rússia, as Forças Armadas do país eram deterioradas, mas possuíam armamento nuclear. As corporações enfrentavam dificuldades para manter seus submarinos funcionando no Ártico e controlar uma insurgência mal armada na Chechênia

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Oficiais graduados, às vezes, viviam em alojamentos embolorados e infestados por ratos. E, em vez de usar meias, os mal treinados soldados russos, com frequência, embrulhavam os pés em retalhos de tecidos, da mesma maneira que seus predecessores soviéticos e czaristas.

Duas décadas depois, uma força de combate muito diferente se concentra na fronteira com a Ucrânia. Sob a liderança de Putin, as Forças Armadas russas foram reformadas e transformadas num sofisticado Exército, capaz de se mobilizar rapidamente e com efeitos letais em conflitos convencionais, afirmaram analistas militares. Elas contam com armamento guiado de precisão, uma estrutura de comando dinamizada recentemente e soldados bem alimentados e profissionais. E ainda possuem as armas nucleares. 

Tanques russos e belarussos durante exercícios militares Foto: Russian Defense Ministry Press Service via AP

As forças militares modernizadas emergem como uma ferramenta crucial para a política externa de Putin: capturando a Crimeia, intervindo na Síria, mantendo a paz entre Armênia e Azerbaijão e dando apoio ao líder pró-Rússia do Casaquistão. Agora, os militares russos estão em meio à sua mais ambiciosa – e mais ameaçadora – operação: valendo-se de ameaças e, como muitos temem, da força, para trazer a Ucrânia de volta à esfera de influência de Moscou. 

“A mobilidade de suas forças militares, seu preparo e seu equipamento permitem à Rússia pressionar a Ucrânia e o Ocidente”, afirmou Pavel Luzin, analista de segurança russo. “Armas nucleares não são suficientes.” 

Sem disparar nenhum tiro, Putin forçou o governo de Joe Biden a deixar de lado outras prioridades de política externa e enfrentar reivindicações do Kremlin que a Casa Branca ignorava havia muito tempo – particularmente de reverter a tendência pró-Ocidente na Ucrânia. 

Aposta

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Usar forças militares para recuperar a relevância da Rússia na arena global – perdida com o fim da Guerra Fria – é a aposta mais alta de Putin. Ele definiu essa doutrina em 2018, quando usou seu discurso anual para revelar que Moscou possui mísseis nucleares capazes de voar a velocidades 20 vezes maiores que a do som. “Ninguém nos ouvia”, afirmou Putin no discurso, que incluiu uma simulação em vídeo de um míssil a caminho dos EUA. “Ouçam-nos agora.” 

Atualmente, é a modernização das forças convencionais que impulsiona a crise na Ucrânia. Os tanques T-72B3 concentrados na fronteira ucraniana possuem um novo sistema de visualização térmica para combates noturnos e mísseis teleguiados com duas vezes o alcance de outros tanques, segundo Robert Lee, ex-soldado, candidato a PhD da King’s College de Londres e especialista nas Forças Armadas russas. Mísseis de cruzeiro Kalibr, disparados de navios e submarinos do Mar Negro, e foguetes Iskander-M, espalhados pelas fronteiras, são capazes de atingir qualquer ponto da Ucrânia, afirmou Lee.

Esquadrão

Na década passada, a Força Aérea russa adquiriu mais de mil novas aeronaves, segundo um artigo de 2020 de Aleksei Krivoruchko, um dos vice-ministros da Defesa da Rússia. Isso inclui os mais avançados caças do país, os SU-35S – um esquadrão desses aviões de combate foi enviado a Belarus para exercícios militares conjuntos. 

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As novas capacidades militares da Rússia ficaram evidentes em sua intervenção na Síria, em 2015. Elas não apenas se mostraram efetivas, mas também surpreenderam alguns militares americanos. “Tenho vergonha de admitir, mas fiquei surpreso alguns anos atrás quando mísseis Kalibr disparados do Mar Cáspio atingiram alvos na Síria”, afirmou o tenente-general Ben Hodges, ex-comandante do Exército americano na Europa. “Não foi apenas essa capacidade que me surpreendeu, eu nem sabia de sua existência.”

O pensamento do Kremlin também evoluiu a respeito do tamanho das Forças Armadas. Os militares russos contam cada vez mais com um enxuto e bem treinado núcleo de aproximadamente 400 mil soldados profissionais. 

Estratégia

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A novidade não é apenas o equipamento modernizado da Rússia, mas a teoria em evolução sobre a maneira que o Kremlin dispõe disso. Os militares russos aperfeiçoaram uma abordagem que Dmitri Adamski, um estudioso de segurança internacional da Universidade Reichman, em Israel, qualifica como “coerção transversal” – combinando o uso da força ou sua ameaça com diplomacia, ciberataques e propaganda para alcançar objetivos políticos. 

A estratégia combinada está em prática na atual crise da Ucrânia. A Rússia está pressionando por concessões amplas e imediatas do Ocidente. A movimentação de tropas russas na aliada Belarus colocou uma força com capacidade de invasão a 160 quilômetros de Kiev, a capital ucraniana. Os meios de comunicação estatais da Rússia alertam que são as forças ucranianas que preparam atos de agressão.  Em 14 de janeiro, hackers derrubaram dezenas de websites do governo ucraniano e postaram num deles uma mensagem declarando: “Tenham medo e esperem o pior”. “Vemos algo de guerra cibernética, vemos diplomacia, vemos exercícios militares”, afirmou Adamski. “Tudo se relaciona e é projetado para isso.” 

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Nem todo equipamento militar espalhado pela fronteira ucraniana é o que a Rússia tem de mais avançado. As forças concentradas no norte contam com armamento mais antigo e foram colocadas por lá para intimidar e exaurir recursos ucranianos, afirmou Oleksiy Arestovych, ex-oficial de inteligência ucraniano que agora atua como analista político e militar. 

As unidades mais bem equipadas e modernizadas, afirmou ele, foram mobilizadas para uma área próxima às duas províncias separatistas da Ucrânia, no leste do país, onde a Rússia instigou uma guerra separatista em 2014 que continua até hoje. 

A modernização das forças militares russas destina-se também, e cada vez mais, a mandar uma mensagem para os EUA, projetando o poder russo para além do Leste Europeu, frustrando, e por vezes surpreendendo, as autoridades americanas. 

Aviões de transporte militar russos levaram poucas horas, por exemplo, para iniciar o envio de cerca de 2 mil soldados de tropas de paz, juntamente com armamento pesado, para o sul do Cáucaso, após Putin intermediar o fim da guerra entre Azerbaijão e Armênia, em 2020. 

Na Síria, onde a Rússia interveio em 2015 usando devastadores ataques aéreos e algumas tropas para proteger o presidente Bashar Assad, os avanços russos mostraram que o país é capaz de acionar armamento teleguiado de precisão, uma vantagem que as forças ocidentais tiveram sobre a Rússia por muito tempo. 

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Laboratório

A Rússia usou a guerra na Síria, afirmam especialistas, como um laboratório para refinar táticas, armamentos e para fornecer experiência de combate para grande parte de suas forças. Mais responsabilidades foram delegadas a oficiais de baixa patente, um grau de autonomia que contrasta com a estrutura de governo civil da era Putin. O ministro russo da Defesa, Serguei Shoigu, afirmou no mês passado que todos os comandantes de tropas terrestres, 92% dos pilotos da Força Aérea e 62% da Marinha têm experiência de combate. 

“Eles mostraram a si mesmos e ao mundo que são capazes de lançar operações em grande escala com armamento de precisão, armamento de longo alcance e capacidades de inteligência como apoio”, afirmou Adamski, especialista radicado em Israel.

Apesar de todos os avanços nos anos recentes, as Forças Armadas da Rússia apresentam a mesma fraqueza crítica para suas predecessoras soviéticas: o lado civil da economia do país, quase totalmente desprovida de indústrias de tecnologia e investimentos corporativos em pesquisa e desenvolvimento. Os gastos militares da Rússia equivalem a uma porcentagem muito maior do PIB do país do que na maioria dos Estados europeus, o que sufoca outros setores. 

Quando militares ucranianos derrubaram drones de reconhecimento russos, por exemplo, descobriram equipamentos eletrônicos e motores comprados de empresas que fabricam drones de lazer na Europa Ocidental, segundo relatório da Conflict Armament Research, empresa com base no Reino Unido, especializada em análise de armamentos. 

Falhas

Um importante ponto de inflexão ocorreu em 2008, quando um conflito latente havia muito tempo sobre territórios em disputa na Geórgia explodiu numa guerra. As forças russas rapidamente derrotaram seus vizinhos georgianos, mas a guerra evidenciou profundas deficiências dos militares russos. 

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As falhas ocasionaram uma ampla reforma nas Forças Armadas russas. A destreza militar soviética em combates terrestres foi reavivada, com melhorias em áreas como tecnologia de artilharia, de acordo com Mathieu Boulègue, pesquisador do programa sobre Rússia e Eurásia da Chatham House, de Londres. 

Pouco mais de uma década depois, acredita-se que as ferramentas russas de guerra eletrônica – que podem ser usadas para interceptar ou embaralhar comunicações de inimigos, assim como tirar drones de curso ou derrubá-los – sejam muito superiores aos equipamentos militares americanos, afirmaram analistas. 

Moscou enfrentou alguns percalços, incluindo desconcertantes falhas em armamentos. Em 2019, o protótipo de um míssil de cruzeiro de propulsão nuclear explodiu durante um teste, matando pelo menos sete pessoas e espalhando radiação por quilômetros. 

Inimigos

Mas, à medida que a retórica do Kremlin define a Rússia como um país cada vez mais encerrado num conflito existencial com o Ocidente, quase nenhum gasto foi poupado. O investimento nos militares veio acompanhado de uma militarização da sociedade russa sob Putin, incrustando no país o conceito de uma pátria-mãe cercada de inimigos e a possibilidade de guerra iminente. 

Todos esses desdobramentos, afirmam analistas, dificultam que o Ocidente consiga impedir Putin de atacar a Ucrânia, se ele estiver determinado. “É quase impossível desviar a Rússia de seu desejo de travar mais uma guerra contra a Ucrânia”, afirmou Boulègue. “Não podemos dissuadir uma visão de mundo.”/ TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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