França planeja multa para cantadas 

Em meio à leva de denúncias, projeto de Macron prevê punição financeira para agressões sexuais

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Por Andrei Netto , Correspondente e Paris 
Atualização:

O cenário é sempre o mesmo: a linha 13 do metrô. Desde que chegou a Paris, há um ano, Alice Millou, de 25 anos, coleciona histórias de agressões sexuais, de homens que a apalpam ou até se masturbam ao se esfregar contra seu corpo em um vagão lotado. Depois de duas outras agressões ainda mais sérias, sofridas em sua adolescência, a jovem decidiu quebrar o silêncio. Há seis semanas, escreveu uma carta aberta e interpelou, em uma petição pública, duas ministras de Estado, uma governadora regional e a diretora-presidente da empresa pública de transportes da capital da França para que tomem providências.

Alice Millou, de 28 anos,escreveu uma carta aberta e interpelou, em uma petição pública, autoridades francesaspara que tomem providências contra abusos Foto: Édouard Boucart PERIAUX Pictures

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“Muito além da minha experiência pessoal, me dei conta de que todas as mulheres que me cercam, entre amigas, mãe, irmã, tias, todas foram importunadas, ofendidas ou agredidas por homens”, conta Alice, formada em culinária e membro de uma equipe de cozinheiros de um restaurante em Paris. “Fui agredida sexualmente várias vezes na minha vida. Quando era muito jovem, um dono de bar se permitiu fazer coisas que eu prefiro não citar aqui, e me traumatizaram. Na Espanha, aos 18 anos, fui perseguida até minha casa por um homem que acabou me agredindo. No metrô de Paris, foram três vezes em poucos meses.”

Na petição, assinada por 25 mil pessoas, Alice pede investimento em uma campanha de educação no metrô para conscientizar homens sobre a gravidade do ato. “Há pessoas, inclusive mulheres, que me disseram ‘pare de dramatizar, nem é grave’. Mas eu aposto que 8 em cada 10 que passam por isso voltam para casa com o coração apertado”, afirma. 

Além de educação, parte dos signatários pede a ação das autoridades para que tornem efetiva a legislação que prevê pena de até 5 anos de prisão e € 75 mil em multa para a agressão sexual praticada pelos “frotteurs” – os “esfregadores” do transporte público francês. Um estudo de 2016 da Federação Nacional dos Usuários de Transportes indicou que 90% das mulheres questionadas afirmam ter sido vítimas de assédio nos transportes públicos.

Atento à indignação crescente de mulheres como Alice em relação ao assédio, a violência e à desigualdade sexual, o presidente da França, Emmanuel Macron, decidiu apresentar nas próximas semanas um conjunto de leis para coibir a violência sexista e sexual para ser votado em 2018 pelo Parlamento. Entre as medidas estão a criação de um novo delito: a ofensa sexista. O objetivo é criar condições para que a polícia possa multar homens que ofendam ou assediem mulheres na rua.

O delito terá sobretudo um caráter simbólico, mas o governo leva a iniciativa a sério para estabelecer um limite claro entre o que seria uma tentativa de sedução e o que não passa de injúria sexista ou agressão sexual. “Todas as mulheres da região parisiense que encontro dizem ter sido vítimas de violências no cotidiano”, disse Macron. “Quero um procedimento mais simples de advertência, porque as mulheres não ousam prestar queixa. Temos de dar à polícia os meios de reprimir.”

Weinstein. Por trás da iniciativa está uma pressão pública inédita na França contra o assédio e a violência contra a mulher. A onda de indignação teve início após o caso Harvey Weinstein, protagonizado pelo produtor de cinema americano. Agressor sexual compulsivo, ele havia recebido, em 2012, a Legião de Honra, a mais alta distinção concedida pelo Estado francês, entregue pelo presidente Nicolas Sarkozy no Palácio do Eliseu. 

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Desde o escândalo, uma campanha espontânea nasceu nas redes sociais para estimular mulheres a denunciar agressores. O resultado foi alarmante: mais de 200 mil menções no Twitter. Os casos citados são com frequência de assédio de rua e de frases como “Senhorita, você é linda”, que logo se transformam em xingamentos como “vagabunda” ou “cadela”. 

Os testemunhos incluem ainda a ação de “esfregadores”, de assédio em ambiente de trabalho ou até mesmo de estupros. Há queixas reiteradas também a respeito de bairros específicos da capital, como La Chapelle-Pajol, caracterizados pela alta presença de imigrantes – não raro apontados como menos sensíveis aos direitos da mulher e aos limites da sedução. 

“Eu cresci em um bairro difícil e estava habituada a esse tipo de atitude. Mas minhas amigas me chamaram a atenção para o fato de que não é normal sermos assediadas ou agredidas o tempo todo no bairro em que moramos”, diz A.G., de 27 anos, manicure e moradora do bairro. 

A onda de indignação na França ganha eco sobretudo porque os casos acontecem em diferentes classes sociais e até em circunstâncias profissionais inimagináveis. Jornalista de uma agência internacional, a americana Jenny Barchfield enfrentou uma dessas situações ao final da cobertura de uma viagem presidencial. 

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O grupo de repórteres do qual fazia parte foi levado ao aeroporto em um ônibus contratado pela presidência da França. “O ônibus era grande e éramos poucos os jornalistas. Então, um técnico de som de uma rede de TV veio e perguntou se havia alguém ao meu lado. Achei estranho, porque o ônibus estava vazio, mas não quis ser descortês”, conta. 

“Ele se sentou com seu equipamento no colo e eu segui trabalhando em meu computador. Em determinado momento, reparei que ele estava se comportando de forma estranha, com os olhos fechados e com a mão sob o equipamento. Então me dei conta de que ele estava se masturbando.” 

Para Jenny, agressões são sistemáticas – e por isso precisam ser denunciadas. “É algo cotidiano. Todas as vezes que você sai na rua, está sujeita a isso”, reitera a jornalista, que viveu no Rio de Janeiro entre 2012 e 2016 e garante: no Brasil é pior, em parte pela insegurança e o risco maior de agressão física.

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Números do Instituto Nacional Demográfico da França, obtidos pelo jornal Le Figaro, revelam a extensão do problema. Em 2015, 62 mil mulheres se declararam vítimas de estupros e 553 mil, de agressões sexuais. No mesmo período, a Justiça condenou 1.040 estupradores e 4,6 mil agressores sexuais.