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França teria acobertado genocidas de Ruanda

A Operação Turquesa, intervenção militar liderada pelas Forças Armadas francesas, é cada vez mais contestada 20 anos após conflito

Por ANDREI NETTO , CORRESPONDENTE e PARIS
Atualização:

Eram 20h27 de 6 de abril de 1994, há exatos 20 anos, quando mísseis terra-ar de fabricação russa atingiram em cheio a fuselagem de um avião executivo Mystère-Falcon 50 que se preparava para tocar a pista do aeroporto de Kigali, capital de Ruanda. Jamais esclarecido, o atentado que matou o presidente ruandês Juvénal Habyarimana e o líder do vizinho Burundi, Cyprien Ntaryamira, marca o início de um dos episódios mais chocantes da história: os 100 dias do genocídio de Ruanda e seus 800 mil mortos.A barbárie - apogeu de uma guerra civil iniciada em 1990 entre guerrilheiros de etnia tutsi da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) e as Forças Armadas controladas por membros da etnia hutu -, só pararia após a intervenção do Exército da França, que liderou uma ação militar com o aval das Nações Unidas. Duas décadas depois, a chamada Operação Turquesa sofre acusações de ter protegido genocidas e acobertado a corresponsabilidade da França. As acusações que pesam são duas: a de corresponsabilidade pelo massacre e a de proteção ativa de genocidas. A primeira diz respeito ao período entre 1991 e 1993, em que oficiais franceses, a mando do Palácio do Eliseu, protegeram o regime de Habyarimana e treinaram soldados hutus para o combate contra os rebeldes tutsis da FPR. A segunda acusação diz respeito à fuga em massa dos responsáveis pelo genocídio, que se misturaram aos milhares de refugiados e deixaram o país - alguns dos quais receberam autorização para viver em Paris. Foi o caso de Pascal Simbikangwa, ex-capitão ruandês condenado pela Justiça da França, em março, a 25 anos de prisão por crime de genocídio - primeiro processo de uma série de 27 que devem chegar aos tribunais do país nos próximos meses.Vítimas. Engenheira química de 59 anos, Dafroza Mukarumongi deixou Kigali uma semana antes dos ataques, quando a violência se agravava. Das dez pessoas que viviam na casa em que estava hospedada em Ruanda, só uma sobreviveu. Ela não poupa críticas à ação do governo francês. "Não há dúvidas de que havia uma cumplicidade política e militar entre os dois governos", disse ao Estado.Ao lado do marido, Alain Gauthier, Dafroza é uma das fundadoras do Coletivo de Vítimas de Ruanda, a entidade que levou à Justiça os pedidos de investigação contra os atuais acusados. O grupo também é responsável pela acusação contra militares franceses que teriam decidido não intervir durante três dias na localidade de Bisesero, onde assassinatos e estupros em massa ocorreram entre 27 e 30 de junho de 1994.Para Gauthier, suspeitas como essa provam que a Operação Turquesa foi uma ofensiva militar decidida tardiamente e por motivos até hoje escusos. "Uma das consequências da operação foi de que grande parte dos genocidas foram para partes do país não ocupadas e hoje fazem parte de grupos de extermínio no Congo", denuncia.Sociólogo e autor de artigos e livros sobre o tema, André Guichaoua fazia trabalhos de pesquisa na África e estava em Kigali no início do genocídio. Com seu dinheiro, comprou a vida de ruandeses perseguidos pagando aos carrascos e escondendo os sobreviventes. Além disso, salvou duas crianças órfãs, levadas para Paris, mas refugiadas na Suíça. Ao Estado, Guichaoua confirmou ter presenciado atos de proteção ostensiva de autoridades envolvidas nos crimes. "Eu vi responsáveis políticos do massacre se refugiarem na embaixada da França", diz, referindo-se a um grupo de 173 pessoas cujas identidades ele mesmo revelou em um documento entregue à Justiça. "Muitos outros documentos secretos sobre Ruanda foram destruídos nos últimos 20 anos", conta.A reportagem ligou para o general da reserva Jean-Claude Lafourcade, responsável pela ação militar, mas não obteve resposta. Ghost writer do livro Opération Turquoise: Rwanda, 1994, publicado em nome do general, o jornalista francês Guillaume Riffaud disse: "A França estava do lado dos hutus, os quais formou. Mesmo que não tenha portado o machado, porta uma corresponsabilidade".

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