Gangues e massacres: morte de presidente do Haiti é novo caso da violência crescente desde 2018

Segundo relatórios da ONU e grupos que estudam o crime organizado no país, quadrilhas aumentaram seu domínio sobre bairros de Porto Príncipe e recebiam apoio do governo

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Por Fernanda Simas
Atualização:

O assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, na residência presidencial na quarta-feira 7 talvez seja a maior consequência da escalada de violência que afeta o país desde 2018. No dia 1.º de julho, o Conselho de Segurança da ONU divulgou um documento relatando preocupação com a deterioração política, de segurança e humanitária no país, pedindo que o governo assumisse a responsabilidade da situação. A base da declaração foi um documento do Escritório da ONU no Haiti mostrando o aumento de massacres, homicídios, sequestros e roubos desde 2018.

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Moradores de Porto Príncipe, capital do Haiti, contam que a presença das gangues nas ruas da cidade aumentou muito nos últimos dois anos, principalmente pela crescente desigualdade social.

“A existência dessas quadrilhas é de conhecimento público, viraram uma realidade diária no país. Com a deterioração da situação social e a grande pobreza - temos quase 5 milhões de habitantes em insegurança alimentar - o domínio dessas gangues se tornou muito grande”, conta o embaixador do Brasil no Haiti, Marcelo Baumbach, ao Estadão. “Mas muito pouco pode ser feito porque os recursos do governo haitiano são muito limitados, isso causa atraso em pagamento de policiais, obtenção de pouco equipamento e assim por diante.”

Desde o ano passado, o InSight Crime, grupo de estudo que monitora o crime organizado na América Latina, tem publicado relatórios sobre a atividade dessas gangues. “Jimmy Chérizier, conhecido como Barbecue, foi implicado em um massacre pela primeira vez enquanto era policial no país caribenho em novembro de 2017. O que começou como uma operação anti-gangues se tornou em uma execução extrajudicial de 14 civis perto de Porto Príncipe”, disse o grupo em julho do ano passado. 

Homem da Polícia Nacional monta guarda na entrada da residência presidencial, em Porto Príncipe. Foto: VALERIE BAERISWYL / AFP

Um ano depois, Chérizier esteve envolvido no massacre conhecido como La Saline, quando 71 civis foram mortos. Apenas em dezembro de 2018, Chérizier foi expulso da polícia e, então, se tornou a mente por trás da aliança de ao menos nove gangues “G9 an Fanmi” (G9 e Família). 

“Elas (gangues) parecem controlar Porto Príncipe agora e constantemente há conflitos entre elas. Na maioria das vezes, roubam cargas de caminhões e sequestram pessoas. Ouvimos rumores sobre quem faz parte desses grupos, mas nunca soubemos de nada concreto”, diz ao Estadão Philippe Roy, haitiano que trabalha em uma loja de aluguel de carros na cidade.

Na quarta-feira, as ruas de Porto Príncipe receberam maior policiamento e muitos comércios foram fechados. O primeiro-ministro Claude Joseph decretou estado de emergência e muitos haitianos não saíram de casa. “Francamente, eu não sei mais o que pode acontecer. Estamos tentando levantar a cabeça e entender o que houve. Não esperávamos esse desdobramento”, diz Roy, ao explicar que já se acostumou a ver os crimes não terem solução no país.

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Para quem consegue ter garantias de segurança, como o embaixador brasileiro, a situação do dia-a-dia é um pouco menos preocupante, mas a indignação sobre as investigações criminais é a mesma. “Os assassinatos estão ficando muito graves. Semana passada, 20 pessoas foram assassinadas. Já morreram ativistas, jornalistas...no ano passado um advogado proeminente aqui foi morto e fica tudo por isso mesmo, ninguém descobre quem cometeu os crimes”, afirma Baumbach. 

Relação com o poder

Segundo as investigações do InSight Crime, a aliança G9 tinha relações fortes com o governo de Moïse. “Os líderes das gangues estão aparentemente livres de perseguições desde que ajudem a manter a paz nos bairros que controlam. Em troca, o governo Moïse encontrou nesses grupos soldados leais para acabar com a insegurança, reprimindo as vozes da oposição e conseguindo apoio político em toda a capital”, diz o relatório do grupo de estudo de 2020. 

O apoio das gangues se tornou crucial para um presidente que enfrentava protestos e descontentamento popular. “O povo haitiano, principalmente nas cidades, vive com medo de gangues e a violência prevalece no país. O governo tem pouco apoio popular e é acusado de ter relações com muitas dessas gangues, assim como grupos opositores e alguns dos maiores empresários do país (também são acusados dessas relações)”, explicou ao Estadão o professor de Relações Internacionais e referência em Haiti da Universidade George Washington, Robert Maguire.

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Em maio deste ano, um relatório da Universidade de Direito de Harvard, em parceria com um observatório criminal haitiano, mostrou que o governo de Moïse providenciou, entre 2018 e 2020, dinheiro, armas, uniformes policiais e até veículos para que as gangues realizassem ataques pontuais e ampliassem seu domínio. “O pior dos ataques ocorreu entre maio e julho de 2020, quando gangues invadiram a comunidade de Cité Soleil e mataram 145 pessoas. As gangues envolvidas no ataque fariam parte da G9 an Fanmi”, diz o documento.

Em junho deste ano, o InSight Crime reportou o perigo de haver mais caos em Porto Príncipe com o possível desmantelamento da aliança G9, com a briga interna entre gangues. “Desde o começo de junho, uma das maiores gangues de Porto Príncipe, Grand Ravine, tem lançado ataques na região de Martissant, atualmente controlada pela rival Ti Bwa”, informou o think tank. 

A motivação do assassinato de Moïse está sendo investigada. Na quarta-feira, a polícia afirmou ter prendido seis suspeitos e matado quatro mercenários acusados de fazer parte do grupo que invadiu a casa do presidente na madrugada. Agora, a polícia procura os mandantes do crime. 

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Citando o juiz encarregado do caso, a imprensa haitiana informou que o corpo de Moïse foi encontrado com 12 balas e que seu escritório e quarto foram saqueados. Segundo o primeiro-ministro do Haiti, “os criminosos eram estrangeiros e falavam inglês e espanhol”. 

“Há duas preocupações imediatas: o risco de maior instabilidade política no país e a necessidade de frear a violência e os abusos. Para isso, é necessário o apoio da comunidade internacional, afinal o Judiciário no Haiti é muito fraco”, explica a vice-diretora para as Américas da Human Rights Watch (HRW), Tamara Taraciuk. 

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