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Governo egípcio propõe dissolução de grupo islamista e agrava instabilidade

Ao impor a clandestinidade à Irmandade Muçulmana, militares tentariam desmobilizar resistência ao golpe que depôs Mohamed Morsi

Por Andrei Netto
Atualização:

O governo interino do Egito propôs neste sábado, 17, declarar o grupo político e religioso Irmandade Muçulmana ilegal em todo o país. A iniciativa foi lançada pelo primeiro-ministro de facto, Hazem al-Beblaui, um dia após novos choques entre militantes e as forças de ordem deixarem 173 mortos no Cairo e no interior. Nas últimas 96 horas, uma escalada de violência inédita entre as forças de segurança e militantes da Irmandade Muçulmana no Egito fez mais de 800 mortos.

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De acordo com o porta-voz do governo, Sharif Shawky, a alternativa "está em estudo". Se o banimento for confirmado, o regime golpista do Egito dará em 2013 o mesmo passo que outro regime militar protagonizou em 1954, jogando na clandestinidade o grupo religioso fundado em 1928 – seu objetivo é a criação de um Estado islâmico no país. "A reconciliação é possível para aqueles que não têm as mãos sujas de sangue", afirmou Shawky. A ameaça foi seguida de novas convocações para protestos ontem.

Para os islamistas, que sofrem o conflito na carne, os massacres dos últimos quatro dias colocaram o país na rota da jihad e da guerra civil. Para eles, a crise política, que se agravou com o golpe de 3 de julho, só pode ser resolvida com o retorno de Mohamed Morsi.

Ao longo da semana, a reportagem do Estado mergulhou no universo da Irmandade Muçulmana, ouviu dezenas de islamistas e reconstituiu o massacre de Nasr City por meio de seus sobreviventes. Longe de dissuadir os islamistas, as mortes só acentuam a disposição dos militantes religiosos de lutar contra a polícia e o Exército para reconquistar o poder.

Essa é a determinação de Abdallah Fouad, de 21 anos. Estudante de engenharia da Universidade do Cairo, ele acampou em uma barraca improvisada na concentração da Irmandade Muçulmana nas imediações da mesquita de Rabaa al-Adawiya, em Nasr City, zona norte da capital egípcia.

Às 6 horas de quarta-feira, foi acordado aos gritos por um companheiro que o avisava da chegada da polícia à Rua Teerã, uma das principais vias do bairro. Embora estivesse no acampamento havia seis semanas, Fouad entendeu que o Ministério do Interior se preparava para cumprir a promessa de "limpar" a mesquita da mobilização islamista.

Às 7 horas, a ofensiva teve início com o lançamento das primeiras bombas de gás lacrimogêneo sobre a multidão. "Logo depois, começaram a atirar com munição real", disse Fouad. Os disparos causaram pânico entre os militantes, mas não os dissuadiram de resistir, atirando pedras e coquetéis molotov contra os policiais. "Esse é o espírito dos militantes da Irmandade", afirmou Fouad. "Resistir a qualquer preço."

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Mohamed Ahmad Ismail, contador de 31 anos, foi vítima dessa disposição. No início da manhã de quarta-feira, ele recebeu em casa a notícia de que o acampamento estava sendo invadido pelas forças de segurança. "Quando soube que o Exército tinha começado a avançar e atirar, ele me disse que correria para lá, porque precisavam da sua ajuda", lembrou Doaa Hamid, de 31 anos, sua mulher, coberta com o niqab, o véu integral negro.

Pouco depois das 14 horas, Doaa viu seu marido de relance nas imagens da TV, tossindo, intoxicado pelo gás lacrimogêneo. Pegou o telefone e ligou, em busca de notícias. Mohamed atendeu e advertiu: "Estão queimando gente viva". Menos de meia hora depois, Doaa voltou ao telefone. "Uma outra pessoa atendeu", contou Doaa. Mohamed estava morto com um tiro na cabeça e outro nas costas. "Não sei o que vou fazer da minha vida, mas meu marido morreu para ajudar a defender os demais. Isso não pode parar."

Ibrahim Mahmoud, engenheiro civil de 24 anos, é um militante pronto para o sacrifício. Na quarta-feira, ele carregou 29 corpos em direção à câmara fria do principal hospital de Nasr City, desafiando os atiradores de elite, que, segundo ele, passaram a mirar em quem socorria os feridos. "Havia gente ferida, mas viva, que acabamos levando para o freezer também, porque sabíamos que não sobreviveriam", contou. "Só um médico estava operando e sem usar anestesia. Não tínhamos mais como atender quem iria morrer. Era a única opção."

Casos como o seu não são exceção. Amr Soulaiman, contador de 26 anos, sobreviveu ao massacre de quarta. Ferido na mão pela manhã, esperava atendimento e ajudava outras vítimas no hospital de campanha de Rabaa quando, às 17h30, ouviu um carro de som da polícia advertir: quem estivesse dentro do hospital e da mesquita de Rabaa, deveria sair ou seria morto. "Eu saí, mas muita gente que estava no interior não conseguia se locomover e acabou ficando", explicou. "Então, a polícia bloqueou as saídas e ateou fogo no hospital e na mesquita. Muita gente foi queimada viva."

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Mesmo sem ser militante da Irmandade, Imad Ahmad, gerente de banco, aderiu aos protestos na quinta-feira e decidiu ajudar a organizar os corpos no interior da mesquita Imam. "Na quarta-feira, muitos hospitais se recusavam a receber vítimas e alguns só recebiam se os parentes aceitassem assinar um termo dizendo que a pessoa havia se suicidado", contou. "Médicos têm de fazer esses arranjos com as autoridades para poder atender. Isso é justo?"

A soma de seis semanas de repressão, quatro massacres e mais de mil mortes – em números oficiais – criou entre os militantes da Irmandade Muçulmana uma atitude típica de jihadistas. Abdulraman Mubarak, médico veterinário, trazia, na sexta-feira, seu nome escrito nos braços, caso fosse necessário uma identificação após sua morte em choques com a polícia. "Há muitas pessoas que não encontram seus familiares desaparecidos", afirmou. "Não me importo em morrer. Só não quero ser um desses." / COM REUTERS

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