Governos locais são desafio para Pequim

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Por Francis Fukuyama
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O fiasco do Revezamento da Tocha Olímpica chamou a atenção do mundo para a questão dos direitos humanos na China. Qual a fonte das violações de direitos humanos no país, atualmente? Muitas pessoas presumem que o problema é que a China continua a ser uma ditadura comunista e as violações ocorrem porque o Estado chinês, fortemente centralizado, ignora os direitos dos seus cidadãos. No que se refere ao Tibete e à supressão do movimento religioso Falun Gong, elas podem estar certas, mas o maior problema da China atual consiste no fato de que o Estado chinês centralizado é, de certo modo, fraco demais para defender os direitos do seu povo. Hoje, a grande maioria das violações dos direitos dos cidadãos chineses comuns - camponeses que tiveram suas terras confiscadas sem justa compensação, trabalhadores forçados a trabalhar em condições de quase escravidão, ou aldeões envenenados pelo despejo ilegal de poluentes - ocorre em um nível muito abaixo do nível do governo de Pequim. A caminhada da China em direção à modernização, depois de 1978, baseou-se fortemente nos chamados "empreendimentos de cidades e aldeias", corpos governamentais locais que tinham liberdade para abrir negócios e inserir-se na economia de mercado emergente. Esses empreendimentos - os ECAs - tiveram um enorme sucesso e muitos, hoje em dia, são extraordinariamente ricos e poderosos. Em redutos com companhias e empreendedores privados, são eles que produzem, hoje, condições que se assemelham às dos "moinhos satânicos" da Inglaterra industrial primitiva. FRAQUEZA E DEPENDÊNCIA O governo central certamente gostaria de acabar com esses governos locais, mas não tem condições para isso. Além de não ter essa capacidade, o governo central depende dos governos locais e do setor privado para produzir empregos e renda. O Partido Comunista sabe muito bem que está cavalgando um tigre. A cada ano ele enfrenta alguns milhares de protestos sociais violentos, todos contidos e abafados pelas autoridades estatais - que, ainda assim, não conseguem chegar à origem da agitação. Os americanos desconfiam tradicionalmente de governos centrais fortes, favorecendo um federalismo que distribui poderes a governos estaduais e locais. Há um forte desejo de aproximar o governo do povo, mas as pessoas se esquecem freqüentemente de que a tirania pode ser imposta tanto por oligarquias locais como por governos centralizados. Na história do mundo de língua inglesa, autoridades locais não têm o poder de fiscalizar o governo central, dando-se preferência ao equilíbrio de poder entre os dirigentes locais e um governo central forte - o que vem a ser o verdadeiro berço da liberdade. O perito em direito britânico do século 19 sir Henry Summer Maine, no livro Early Law and Customs (Leis e Costumes Primitivos), aponta exatamente para esse fato no ensaio denominado "França e Inglaterra". É nesse texto que ele nota que as queixas mais repetidas nos cahiers produzidos às vésperas da Revolução Francesa - a que Tocqueville também se refere em seu L?Ancient Régime et la Révolution Française (nas edições em português, Antigo Regime e a Revolução) - eram as reclamações de camponeses sobre o desrespeito aos seus direitos de propriedade por cortes "senhoriais" (de proprietários). De acordo com Henry Maine, o Poder Judiciário na França era descentralizado, estava nas mãos da aristocracia local. Em contraste, desde os tempos da conquista normanda, a monarquia inglesa conseguiu estabelecer um sistema de justiça forte, uniforme e centralizado. Eram as Cortes do Rei que protegiam os grupos que não eram de elite das depredações das aristocracias locais. O malogro da monarquia francesa em impor esses mesmos controles sobre as elites locais foi uma das razões que levaram os camponeses que saqueavam as mansões senhoriais, durante a revolução, a ir direto para o quarto ou sala onde estavam guardados os títulos de propriedade que lhes tinham sido roubados, em sua avaliação, nas gerações anteriores. Na Inglaterra, a legitimidade dos direitos de propriedade existentes era amplamente aceita. A fraqueza do Estado pode ferir a causa da liberdade. As aristocracias da Polônia e da Hungria conseguiram impor as suas versões da Magna Carta aos seus monarcas; diferentemente do governo da Inglaterra, os governos centrais desses países foram fracos demais, nas gerações que se seguiram, para proteger o campesinato dos senhores locais - isso para não falar em proteger os seus países, como um todo, das invasões externas. O mesmo foi verdade nos Estados Unidos. O "Direito dos Estados" e o federalismo foram as bandeiras sob as quais as elites locais do Sul (escravagista) puderam oprimir os afro-americanos, antes e depois da Guerra Civil. A liberdade americana é produto de um governo descentralizado, equilibrado por um Estado central forte - um Estado capaz, quando necessário, de mandar a Guarda Nacional para Little Rock, Arkansas, a fim de proteger o direito das crianças negras de ir à escola. É difícil saber se e quando a liberdade emergirá na China do século 21. A China poderá ser o primeiro país em que a reivindicação por um governo confiável se origine basicamente da preocupação com um meio ambiente envenenado. Mas isso acontecerá apenas quando a demanda popular por alguma forma de confiabilidade nos governos e empresariados locais seja apoiada por um governo central forte o suficiente para obrigar as elites locais a obedecer às leis do país. TRADUÇÃO DE CECILIA THOMPSON *Francis Fukuyama é filósofo americano e autor do livro ?O Fim da História e o Último Homem?, publicado no Brasil pela Rocco. (c) The American Interest/Global Viewpoint

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