Guaidó fala sobre negociações com Maduro: 'precisamos valorizar cada espaço que tenhamos’

Para líder opositor, diálogo nacional com garantias a todos setores é o caminho para encerrar o regime Maduro

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Por Fernanda Simas
Atualização:

Após mais de dois anos de ter se proclamado o presidente da Venezuela, o líder opositor Juan Guaidó continua procurando formas de transformar o reconhecimento internacional que conseguiu em ação concreta para encerrar o regime de Nicolás Maduro. Por meio do Acordo de Salvação Nacional, ele e outros opositores querem garantir que haja uma eleição presidencial livre no país. 

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“É uma forma para ter garantias, é um caminho para o governo da Venezuela, exercer soberania e ganhar confiança de investidores, por exemplo”, diz Guaidó em entrevista ao Estadão. Mas o opositor lembra que ainda vive, ao lado de outras lideranças, ameaças por parte do chavismo.

O que é o Acordo de Salvação Nacional?

Há pontos-chave para entender isso: aqui vivemos em uma ditadura. Apresentei o que levou a isso e as consequências são trágicas. Além disso, vivemos hoje em um país com indicadores de guerra. Venezuela é o único país do mundo que não está em guerra e tem os níveis tão altos de fome, de emigrantes e refugiados, hiperinflação absurda, a destruição do aparato produtivo nacional. Faço esse contexto porque claramente o regime não quer ceder o poder e, portanto, é necessário conceder incentivos, de pressão e de garantias de uma transição democrática. Nisso entra o Acordo de Salvação Nacional que estamos propondo, para juntar as iniciativas surgidas durantes anos pela resistência democrática, que resistiu a torturas, ameaças, prisões, mas também necessitamos da pressão internacional e as garantias de nossos aliados em nível internacional. Queremos dar garantias a todos os setores, não apenas à resistência democrática, mas também aos militares, por exemplo, que sustentam hoje o regime Maduro, cumprindo o acordo. O Acordo de Salvação Nacional vem para agrupar todos esses movimentos e propor uma alternativa viável, que reconheça a existência de uma ditadura na Venezuela, mas também a necessidade de dar garantias a todos os setores. Os que querem mudanças são maioria no país. 

Como tratar desse acordo num momento em que opositores continuam sendo presos, como José Javier Tarazona?

Maduro está sendo denunciado por crimes de lesa-humanidade. (Michelle) Bachelet afirmou em seu relatório que as Faes, força policial especial de Maduro, são um grupo de extermínio e precisam ser dissolvidos, que foram responsáveis por matar 18 mil de maneira extrajudicial. São milhares de denúncias de violações aos direitos humanos, de tortura, de abusos sexuais. Javier Tarazona e a organização FundaRedes justamente saíram em público denunciando a presença de grupos irregulares, como as dissidências das Farc e o ELN (Exército de Libertação Nacional), na Venezuela e como há uma ditadura que financia essa presença e se envolve com o  narcotráfico. Ontem (terça-feira), um procurador chavista afirmou que o crime de Tarazona foi justamente denunciar esses fatos. Veja a que ponto chegamos, a ditadura nem disfarça mais. Não é um segredo a presença do narcotráfico aqui, tanto que mataram soldados venezuelanos entre dissidências das Farc. 

Juan Guaidó, o líder oposicionista venezuelano, acena após ser reconhecido no discurso do Estado da União de Donald Turmp, em 4 de fevereiro de 2020. Conselheiros de Biden, de acordo com relatos, têm pouca fé em continuar a tratar Guaidó como líder de facto da Venezuela Foto: Anna Moneymaker/The New York Times

Diante disso, o senhor ainda acredita ser possível negociar com o regime Maduro?

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Para isso estamos propondo o Acordo de Salvação Nacional. É uma forma para ter garantias, é um caminho para o governo da Venezuela, exercer soberania e ganhar confiança de investidores, por exemplo. Achamos que é a melhor forma para que eles (governistas) colaborem com um processo de institucionalização da Venezuela.

Nesse contexto, a decisão da Justiça venezuelana de permitir que a MUD participe das eleições deste ano é positiva?

Isso tem relação com a narrativa do governo. Não faz sentido se numa diferença de dias anunciam a prisão de Tarazona. As ameaças veladas continuam. Mas, de novo eu falo, estamos em uma ditadura, e precisamos valorizar cada espaço que tenhamos para exercer a maioria e poder organizar e mobilizar as pessoas. Estamos lutando para que as eleições tenham como resultado a vontade da maioria da população e não uma ação simbólica por parte do governo em um momento de dificuldade. É preciso lembrar que eles tiram a condição do partido e devolvem sem explicações, então o que evita que eles retirem novamente? Além disso, é preciso lembrar que estas serão eleições locais, queremos ver como será na eleição presidencial, essa sim poderá mudar algo aqui.

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Outra tragédia que afeta a Venezuela é a pandemia de covid-19. O que vocês tentam fazer para levar vacinas?

Se estima que apenas 0,8% da população tenha recebido a vacina neste momento, segundo números da ONU. Os números da ditadura são obscuros porque tentam esconder o que está acontecendo, como se fosse possível. Estamos muito preocupados porque as medidas sanitárias também são insuficientes e a vacinação tem sido discriminatória porque se gerou um mercado negro de vacinas. Quem tem condição de pagar, conseguiu obter alguma dose e se vacinou. Mas a maioria da população não consegue. Por isso, para nós é tão importante o Covax, é a melhor ferramenta para poder vacinar a população sem descriminação. E, mais uma vez, o regime entrou em uma controvérsia com relação à vacina da Astrazeneca e tiveram que pagar uma taxa adicional sem necessidade porque se tivessem fornecido os dados reais sobre a nossa economia teriam acesso de maneira muito mais econômica e simples pelo sistema Covax. Nós temos insistido com o sistema Covax, falamos até em saldar a dívida do regime para tentar obter as vacinas, estamos tentando. 

O autodeclarado presidente da Venezuela, Juan Guaidó Foto: Juan Calero / Reuters

Uma consequência direta disso tudo é a fuga em massa de venezuelanos do país. Como reconstruir o país?

Há experiências e aprendizados que foram obtidos nesse período com muito sacrifício. Pensando nisso e na identidade que temos, acredito que temos material humano para reconstruir a Venezuela. Vemos médicos, enfermeiras, professores, presidentes de universidades importantes, que foram embora. Agora, precisamos de investimentos aqui. Seria interessante que essas pessoas que puderam desenvolver seus talentos na Venezuela possam investir no país. Isso tudo será essencial para reconstruir a Venezuela e reinserir tantos venezuelano que querem voltar ao país. Muitos fizeram suas vidas fora daqui, em outras fronteiras, mas precisam saber que as portas estão abertas aqui. 

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Na sua opinião, quais foram as primeiras ações do chavismo que levaram à deterioração da democracia?

Acredito que indícios da ruptura democrática vieram com o início do processo de usurpação das instituições, com imposições com respeito a leis e normas estabelecidas em nossa Constituição. Tivemos ataques claros a pilares da Constituição, como à liberdade de expressão, vimos até perseguições a canais de comunicação. Em seguida, vieram as violações aos direitos humanos. Não há o respeito à independência dos poderes. E agora vemos o fim da liberdade a associações. No caso da Venezuela, há uma perseguição aos sindicatos, foram criadas, inclusive, estruturas paralelas. Esses primeiros indícios foram denunciados com  muita força.

Não é uma ação contraditória, pensando que os sindicatos ajudaram na ascensão do chavismo?

Sim, é contraditória e mais narrativa do chavismo que outra coisa. A principal central trabalhista aqui, a CTB, foi atacada com muita ferocidade desde 2002. A técnica usada pelo chavismo, inicialmente com respaldo popular, foi construir instituições paralelas. O regime criou centrais sindicais paralelas. Atualmente, todas estão contra Maduro, afinal temos US$ 2 a US$ 3 ao mês de salário mínimo no país. Há um conflito forte entre o regime de Maduro e a OIT (Organização Internacional do Trabalho). Isso mostra a deterioração democrática, não foi de sopetão, isso vem ocorrendo de forma progressiva. A modificação de todos os poderes com a Constituinte foi o auge disso. Um exemplo disso, o presidente do CNE nessa primeira modificação foi Jorge Rodríguez. Como um ex-presidente de órgão que deveria ser autônomo e independente termina sendo prefeito de Caracas e uma das pessoas que mais apoia e da suporte ao regime chavista? Isso mostra o caminho da deterioração.

Juan Guaidó foi convidado por Trump para seu discurso do Estado da União Foto: Mario Tama/Getty Images/AFP

Maduro alega que há democracia no país porque há eleições livres. O que o sr. opina sobre isso?

Por isso fiz referência ao exemplo do presidente do CNE. O caso mostra como foi o sequestro dos poderes públicos na Venezuela. Eleições não implicam em democracia, além disso, as eleições em si necessitam de algumas condições técnicas, políticas, para que sejam livres e transparentes. O controle sistemático dos locais de votação, o não financiamento de partidos políticos, o uso dos meios de comunicação públicos para favorecer o regime e financiar campanhas, impedem que isso ocorra. E a imprensa que optou por denunciar isso, hoje está sendo acusada de traição. Além disso, outra questão importante é o fato de militares da ativa passarem a ocupar cargos públicos no país. Houve um momento em que 53% dos cargos públicos eram ocupados por militares ativos, sem contar os aposentados. Atualmente, esse número é algo entre 23% e 28%, mas novamente vemos o movimento de tomada das instituições. Por isso, dizemos que a democracia está em jogo. 

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