Guerra civil ameaça norte do Iraque

Com saída dos EUA, aumenta tensão entre iraquianos árabes e curdos

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Por Mariana Della Barba
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Duas notícias tiraram o sono dos otimistas em relação à segurança no Iraque na semana passada. Uma explícita e outra mais velada, porém igualmente perigosa. A primeira foi uma série de atentados brutais que atingiu o coração do governo em Bagdá e matou 95 pessoas na terça-feira. Os ataques destruíram prédios do governo e parte da confiança de que as forças iraquianas estariam prontas para proteger os cidadãos sem a ajuda dos americanos, que se retiraram das cidades há dois meses. A segunda notícia veio do principal comandante dos EUA no Iraque, o general Ray Odierno. Ele propôs o envio de mais soldados americanos ao norte do Iraque, na região semiautônoma do Curdistão, onde a tensão entre iraquianos árabes e curdos - um grupo étnico que também é muçulmano - está prestes a explodir e pode dar início a uma nova guerra no país. Essa nova bomba-relógio está enterrada numa faixa de 500 quilômetros entre a fronteira com a Síria e a divisa com o Irã, com áreas disputadas por árabes (apoiados pelo Exército) e curdos (pelas forças curdas chamadas de Peshmerga). A rixa não é nova, mas foi acirrada depois que os militares americanos deixaram as cidades. "Eles funcionavam como uma cola que impedia as duas forças de entrar em conflito", afirmou ao Estado Joost Hiltermann, analista de Oriente Médio do centro de estudos International Crisis Group, responsável por um estudo que alerta para a iminência do conflito. "Agora, sem a mediação americana, tanto árabes como curdos acreditam que precisam se fortalecer para, se necessário, poder combater sozinhos." Prova disso é que, desde o início do mês, a violência na região vem crescendo - contrastando com o restante do país -, e atentados já mataram centenas de pessoas. "Washington precisa usar a influência que lhe resta para conseguir que Bagdá e Irbil (capital do Curdistão) assinem um acordo sobre esses territórios. Caso contrário, poderemos ver uma guerra civil de grandes proporções no momento em que os EUA deixarem totalmente a região", afirma o historiador americano Juan Cole, especialista em Iraque da Universidade de Michigan e autor do livro Engaging the Muslim World (Envolvendo o Mundo Muçulmano, em tradução livre). PETRÓLEO Único grupo que apoiou os EUA na invasão, os curdos ganharam importância com o novo aliado e avançaram sobre áreas que eram suas, mas haviam sido tomadas por Saddam Hussein, como as cidades de Kirkuk, Mossul e arredores. Não por acaso, essas regiões são ricas em petróleo e gás e abrigam as maiores reservas ainda não exploradas do Iraque. Daí o temor de Bagdá em relação ao avanço dos curdos nessa região. A tensão se agrava ainda mais com o discurso anticurdo do premiê iraquiano, Nuri al-Maliki, e de outros líderes árabes (xiitas e sunitas), que acusam os curdos de ter exagerado na retomada de seus territórios e defendem a devolução de algumas áreas. No início do mês, uma brigada do Exército iraquiano tentou passar pela cidade de Makhmour - onde a maioria da população é curda. Temendo que Bagdá reocupasse a cidade, civis curdos bloquearam o acesso e a força Peshmerga ameaçou abrir fogo. Além do risco de confronto entre militares iraquianos e os Peshmerga, há outro perigo: a Al-Qaeda aproveitou o vácuo de segurança criado pela saída dos EUA para atacar cidades que não eram controladas nem por curdos nem pelos militares árabes. A ideia é inflamar a violência sectária entre os dois grupos. Para evitar esse cenário, o general Odierno sugeriu que fossem formados batalhões mistos, com militares árabes e curdos da Peshmerga que seriam supervisionados pelos americanos. "O papel que os EUA têm na região, de esfriar a tensão, vem sendo fundamental, por isso o plano de Odierno é mais que bem-vindo", afirma Daniel Serwer, diretor do Centro Operações no Pós-Conflito, do Instituto Americano pela Paz. Cole concorda que o plano é válido: "Patrulhas conjuntas já foram implementadas antes e deram certo. A questão é saber se o Parlamento iraquiano vai abrir uma exceção para que os soldados americanos entrem em Mossul." A entrada de militares americanos em centros urbanos está proibida. Já o analista do Crisis Group faz ressalvas sobre o objetivo final da proposta de Odierno. "Ela pode amenizar as tensões temporariamente, mas não vai resolver nada no longo prazo", afirma Hiltermann. "Para isso, é preciso que essa estratégia seja vista como uma medida de curto prazo, e venha acompanhada de uma pressão diplomática para resolver a disputa no Curdistão." Mas os especialistas alertam para um risco ainda maior, que nem sequer foi citado pelo general americano: a regionalização do conflito. Num dos piores cenários possíveis, os vizinhos do Iraque que também abrigam populações curdas entrariam na briga, a começar pela Turquia. "Uma participação síria também não pode ser descartada e o Irã pode se colocar como mediador, fortalecendo, assim, sua influência no Iraque", afirma o historiador, acrescentando que a posição dos EUA ficaria enfraquecida com um confronto regional.

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