Guerra Fria no deserto - Pequeno e rico, Catar vira pária no Golfo

País tem a renda per capita mais alta do mundo, mas é isolado por boicote econômico

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Por Declan Walsh e Doha
4 min de leitura

DOHA - Para o emir do Catar, existe pouca coisa que o dinheiro não compra. Adolescente, ele queria ser o Boris Becker do mundo árabe. Então, seus pais pagaram para que o astro alemão do tênis desse aulas para o filho. Fanático por esportes, ele comprou o Paris Saint-Germain e pagou US$ 263 milhões por Neymar – a transferência mais cara da história do futebol. Em 2022, ele receberá a Copa do Mundo – ao custo de US$ 200 bilhões, uma grande conquista para uma seleção que nunca se classificou. Mas hoje, aos 37 anos, o xeque Tamin bin Hamad al-Thani enfrenta um problema que dinheiro nenhum pode resolver.

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Canteiro de obra em Doha, uma floresta de vidro Foto: Tomas Munita/The New York Times

Desde junho, seu minúsculo país é alvo de um boicote decretado pelos vizinhos Arábia Saudita e Emirados Árabes. Da noite para o dia, aviões e cargueiros foram obrigados a mudar de rota, relações diplomáticas foram cortadas e a única fronteira por terra, fechada. Nem os animais foram poupados. Cerca de 12 mil camelos que pastavam em terras sauditas foram expulsos. Os vizinhos acusam o Catar de financiar o terrorismo, se aproximar do Irã e abrigar dissidentes. Tamim nega e atribui a animosidade à inveja. “Nossa independência é uma ameaça”, disse.

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O boicote, o primeiro ato de uma campanha do príncipe saudita Mohamed bin Salman, parece uma briga de família. As populações de Catar, Arábia Saudita e Emirados Árabes vêm das mesmas tribos, compartilham a mesma religião e a mesma comida. 

Durante grande parte do século 20, o Catar era um remanso no Golfo Pérsico que servia de esconderijo de piratas. A população era pobre. No verão, procurava pérolas no mar. No inverno, criavam camelos. Mas, em 1971, surgiu o gás natural. No início, a notícia foi frustrante. “Queríamos petróleo”, lembrou Ahmed bin Hamad, ex-premiê. No entanto, nos anos 90, novas tecnologias permitiram que o gás fosse liquefeito e exportado em navios. O pai do emir, o xeque Hamad bin Khalifa al-Thani, investiu US$ 20 bilhões em uma usina de liquefação em Ras Laffan com ajuda da Exxon Mobil, na época comandada pelo atual secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson. A aposta deu resultado e o Catar tem hoje 30% do mercado global de gás.

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Desde então, seus 300 mil habitantes enriqueceram rapidamente. A renda per capita chegou a US$ 125 mil, a mais alta do mundo, duas vezes maior que a dos EUA e a da Arábia Saudita. O Estado ajudou, oferecendo terras, saúde e educação. Hoje, carros de luxo e limusines trafegam pelas estradas e dificilmente se encontra um sujeito pobre no país. 

Inveja

Rapaz alto e diplomático, Tamim é um típico soberano do Golfo: educado na Inglaterra, como seu pai, tem três mulheres, dez filhos e vive em palácios luxuosos. Sua ascensão ao poder, em 2013, aos 33 anos, constitui um nítido contraste com a gerontocracia da Arábia Saudita, onde os dirigentes se agarram ao trono até a morte. Os sauditas, que têm um território 186 vezes maior, sempre trataram o Catar como um Estado vassalo. Nos anos 40, eles extraíam parte do petróleo do pequeno emirado e, mais tarde, passaram a ditar a política externa e de defesa do país.

Mas a riqueza trouxe também autonomia e o Catar foi seguindo um rumo diferente. Rapidamente, o país assumiu o papel de pacificador regional, transformando Doha em uma espécie de Genebra do Golfo, onde protagonistas de guerras podiam debater suas divergências em hotéis cinco estrelas. O país se aproximou dos EUA, aceitou abrigar uma base aérea americana e ganhou influência por meio da Al-Jazeera, TV de estilo provocativo que é detestada pelas autocracias da região. 

Durante a Primavera Árabe, o Catar permaneceu estável graças à riqueza, à presença americana e à ausência de opositores. A estabilidade sempre causou certa ansiedade em Riad e em Abu Dhabi. A crise com os vizinhos, porém, começou com uma série de eventos aleatórios, aparentemente sem relação um com o outro.

Em março de 2017, Tamim se recusou a extraditar uma dissidente dos Emirados. Em abril, ele pagou US$ 300 milhões para resgatar membros da família real capturados por extremistas no Iraque – o que lhe rendeu críticas por ter negociado com radicais islâmicos. Dois dias depois, hackers a serviço dos Emirados invadiram o site da agência de notícias do Catar e postaram elogios ao Irã e ao Hamas. Era a desculpa que os vizinhos esperavam para anunciar o boicote e iniciar uma campanha midiática contra o Catar. 

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O boicote causou prejuízos, fez os custos de importação dispararem e a Bolsa de Valores perdeu um quinto do seu valor. Mesmo assim, o cotidiano de Doha não mudou. Turistas ainda enchem a cara com vinhos caros em hotéis de luxo, as obras do metrô continuam e um novo museu será em breve a mais recente maravilha arquitetônica da cidade. 

Sob alguns aspectos, o embargo foi positivo. Para compensar a perda do leite saudita, o país criou uma indústria de laticínios no deserto. Em certo dia de julho, em pleno verão, vacas alemãs desceram a rampa de um avião da Qatar Airways no aeroporto de Doha, a primeira remessa de 4 mil animais. Assim, com dinheiro de sobra e uma dose de surrealismo, o Catar se confirma como a exceção do Golfo Pérsico. / Tradução de Terezinha Martino

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