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Guerra judicial na Guatemala

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Por MAC MARGOLIS
Atualização:

Há poucos meses, Iris Yassmín Barrios era uma heroína, saudada por juristas internacionais e com um lugar garantido na história da justiça latino-americana. Em seus 18 anos como magistrada na Guatemala, ouviu casos dos mais escabrosos e redigiu milhares de sentenças contra corruptos, traficantes e torturadores, entre eles o ex-ditador Efraín Ríos Montt. Pelo conjunto da obra, em abril de 2013, foi condecorada com a título de Mulher de Coragem, em cerimônia presidida pela primeira-dama dos EUA, Michelle Obama. Meses depois, comoveu a ordem dos advogados da Espanha, que a premiou por sua dedicação à Justiça e aos direitos humanos.Em uma semana, tudo mudou. Em 4 de abril, foi destituída de seu cargo pelo conselho ético da ordem dos advogados, a Cang, e multada em 40 mil quetzales, mais de R$ 11.400. Ainda se viu forçada a pedir desculpas publicamente por seus atos. Hoje, a premiada juíza não entra com toga no tribunal de seu país.A destituição nada tem a ver com roubalheira ou algum desvio ético da magistrada. Tem a ver, sim, com a entrincheirada política da Guatemala, um país convulsionado por uma guerra civil que se estendeu de 1960 a 1996, mas nunca terminou. Iris presidiu o Tribunal de Alto Risco, onde o ex-general Ríos Montt foi julgado no ano passado por genocídio e condenado, em maio, a 80 anos de prisão. Foi a primeira vez que um ex-mandatário acusado de crimes contra a humanidade foi levado ao tribunal no país.Esse fato em si já é um marco. Demonstra o quanto essa conturbada nação centro-americana, que viu 200 mil vidas consumidas pelos reflexos da Guerra Fria na América Latina, tenha avançado no caminho para a normalização democrática. Que esse mesmo julgamento tenha sido anulado dias depois da sentença e a condenação, engavetada, é prova eloquente de como ainda é longo esse percurso civilizatório.Iris Yassmín Barrios não resistiu a uma queda de braço com a defesa do generalíssimo, que, desde o início, recorreu a malabarismos legais para atolar o julgamento. A casca de banana certeira foi um confronto, possivelmente armado, de seus advogados com o painel de juízes logo no primeiro dia de audiências. No bate-boca, o advogado Francisco García Gudiel foi expulso da corte. Para dar sequência aos argumentos, Iris o substituiu por outro, Moisés Galindo, que, por sua parte, se declarou "humilhado" pela decisão.A junta disciplinar da Justiça, imediatamente, rebateu o argumento do advogado "ofendido", mas a entidade lhe tomou as dores e, quase um ano depois, decidiu contra a juíza.Não foi o primeiro contragolpe dos amigos da ditadura. Em fevereiro, a Corte Constitucional mandou substituir a procuradora-geral, Claudia Paz y Paz, encurtando seu mandato. As razões do tribunal espremeram-se num opaco ofício protocolar. Acontece que Paz y Paz foi quem comandou todo o processo contra Ríos Montt. Defenestrada a procuradora, o colegiado dos poderosos jubilados, agora, volta suas baterias contra a juíza. Não ficou claro nesse embate de poderes o papel do presidente guatemalteco, o ex-general Otto Pérez Molina, que, nos anos de chumbo, lutou sob o comando de Ríos Montt.O generalíssimo ainda terá de responder por seus atos quando o julgamento for retomado no ano que vem. O desfecho, ninguém arrisca prever. A única certeza é que um dos capítulos mais sofridos da Guerra Fria na América Latino está longe de terminar.MAC MARGOLIS É COLUNISTA DO 'ESTADO' E CHEFE DA SUCURSAL BRASILEIRA DO PORTAL DE NOTÍCIAS VOCATIV

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