Guerra nas Estrelas e confusão na Terra

Lembremos as palavras cruéis de Gorbatchev, no momento em que a União Soviética se desfazia: "Daremos um presente terrível a vocês americanos: não terão mais inimigos!"

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

A "guerra nas estrelas", com que sonhava Ronald Reagan antes de ser desdenhada por Bill Clinton, está de volta. Ninguém se surpreende: Bush tinha anunciado seu programa na campanha eleitoral. Ele cumpre promessas. Devemos ficar chateados por que ele as cumpre? Os europeus estão inseguros, mas uma coisa os toca: Bush tomou precauções para não ferir a Europa, a Rússia, o Japão, o Canadá. Ele não tem vontade de repetir a "grosseria" que cometeu, nos primeiros meses de sua gestão, quando contrariou o "protocolo de Kyoto (aquecimento do planeta)" sem informar seus aliados ("um grosseiro", foi mais ou menos o comentário por toda parte). A barulheira que veio em seguida fez mal aos ouvidos americanos. E mais, em seu discurso, Bush disse coisas justas: é verdade que a dissolução da URSS sacudiu toda a situação do planeta. Terminada a guerra fria! Terminado "o equilíbrio do terror" entre duas superpotências, União Soviética e Estados Unidos. Hoje, o mundo não é mais "bipolar". Ele é "unipolar". Mas "unipolar" significa fatalmente multipolar. Na realidade, no esquema atual, em que as duas "supergrandes" (como anteriormente URSS e USA) não se intimidam, em compensação, vê-se vários pequenos Estados que talvez detenham a arma nuclear e possam se servir disso. Esses Estados são os Estados "irresponsáveis", os "Estados criminosos" na primeira fileira, o Iraque, a Coréia do Norte, o Irã. Deixemos de lado o vocabulário (Estados criminosos...), mas a análise é justa, pois diz uma verdade até agora totalmente ocultada: a de que uma potência orgulhosa, embriagada com sua força e estupefata com sua genialidade, como são os Estados Unidos, não suporta muito bem sua posição de única "supergrande". Não ter inimigos (no setor privado assim como no político) é desconfortável, quase insuportável. Lembremos as palavras cruéis de Gorbatchev, no momento em que a União Soviética se desfazia: "Daremos um presente terrível a vocês americanos: não terão mais inimigos!" As reticências em relação ao escudo antimísseis podem vir de três zonas: Europa, Rússia e China. Para a Rússia, Bush toma cuidado com Putin. Ele conversou com ele. Promete recompensas se Putin for gentil. Por exemplo, Bush poderá reduzir para 2 mil ou 2.500 o número de ogivas nucleares (em comparação às mais de 7 mil de hoje). Mas o que Moscou mais teme é um possível abandono do tratado ABM (mísseis antibalísticos) assinado por Nixon no Kremlin, em 1972, já há 30 anos. Esse tratado, chave fundamental da intimidação nuclear, seria de fato abolido, pois ele proíbe que os Estados Unidos construam o escudo antimísseis. Ora, Moscou adora esse velho tratado ABM, pois ele é o símbolo oficial de que a Rússia é uma "superpotência", mesmo que isso não seja mais totalmente verdade. O escudo e, portanto, a revogação do tratado ABM seria o reconhecimento de que o mundo mudou depois de 30 anos, que a intimidação nuclear não tem mais sentido a partir do momento em que não existe mais a União Soviética. Compreende-se, então, por que o Kremlin gosta tanto desse tratado ABM: ele mantém a ficção de que o equilíbrio mundial é o mesmo da guerra fria. No entanto, é possível imaginar que os Estados Unidos têm meios variados para seduzir Putin. Para a China, as coisas são mais complicadas. Desde que tomou posse, Bush teve um prazer demoníaco de provocar a China (o avião espião, o rearmamento de Taiwan, etc.). O escudo só pode excitar Pequim como um pano vermelho diante das narinas de um touro. Na realidade, suponhamos que o escudo se torne verdade: a China será obrigada a reerguer o desafio de se lançar, por sua vez, no ajuste dos arsenais gigantescos, ou seja, de esgotar orçamentos monstruosos em seu armamento com o risco de se esgotar e de arruinar toda a sua economia (que continua frágil, pobre). Poderíamos ver, então, repetir-se o cenário que se desenvolveu na Rússia há 20 anos: talvez tenha sido porque o Kremlin quis fazer um "jogo igual" com os Estados Unidos (em matéria de Defesa) que a Rússia perdeu seu sangue, suas forças e acabou se desfazendo. A Europa parece menos selvagem. Em poucas semanas, passou da ironia ou da irritação para uma compreensão cuidadosa. Foi principalmente a França que mudou seu fuzil de ombro. Chirac entrou logo em combate: "É um convite à proliferação nuclear", etc. etc. Ora, hoje, não se fala nisso: o ministro francês das Relações Exteriores, Hubert Védrine, simplesmente quis que houvesse "consultas". Se a França foi seduzida é porque se sentia isolada na Europa: Tony Blair obviamente foi, desde o início, um entusiasta do escudo. E a Alemanha, após um "enfado", aderiu por sua vez a uma posição mais abrangente. Isso não significa que o sucesso do assunto esteja garantido na Europa. As apreensões continuam e dizem respeito sobretudo ao irremediável "aumento de poder" dos Estados Unidos: se eles fizerem o escudo, a Europa jamais terá condições de acompanhar o imenso avanço tecnológico dos Estados Unidos. O projeto de uma "defesa européia" paralelamente à Otan, muito caro para os europeus, perderá toda a sua possibilidade de se tornar realidade. Com o NMD, a decolagem dos Estados Unidos em relação a todas as outras zonas vai se tornar irremediável: a Rússia será diminuída. A piora da Europa vai aumentar ainda mais. É essa a obsessão dos europeus. Acrescentemos que a França dotou-se, desde De Gaulle, de uma força de "intimidação". Uma força pequena, é verdade, mas enfim era agradável dizer que a possuía! E com um possível escudo, o que acontecerá com ela?

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.