PUBLICIDADE

Hezbollah impõe Estado próprio dentro do Líbano

Organização xiita, que controla parte de Beirute e sul do país, possui Exército, escolas, TV e até time de futebol

Por Gustavo Chacra
Atualização:

O Hezbollah tem bandeira própria, sistema de comunicação independente, escolas para alunos de todas as idades, hospitais, creches, uma rede de TV que serve como porta-voz da entidade e até um time de futebol - o Al Ahed, atual campeão. A organização controla ainda a segurança do aeroporto de Beirute, além de possuir polícia, Exército treinado e bem armado, membros no Parlamento, heróis nacionais, política externa independente e, acima de tudo, um território autônomo que pode ser considerado uma espécie de "Hezbollândia". Já há algum tempo, a organização xiita libanesa tornou-se mais relevante internacionalmente do que o país onde tem sua base. Em qualquer livraria ou jornal do Ocidente ou do Oriente, é mais fácil encontrar a palavra "Hezbollah" do que "Líbano". A área dominada pelo Hezbollah tem como centro o distrito de Dahieh (vem de al-Dahiya al-Janubiya, que quer dizer "subúrbio do sul"), que em muitas partes ainda é um canteiro de obras de reconstrução, pois teve muitos edifícios bombardeados na guerra de 2006 com Israel. A Hezbollândia engloba a maior parte do sul de Beirute, uma região majoritariamente xiita, e outras cidades e vilas do sul do Líbano, como Khiam, Bint Jbeil e Nabatieh. No Vale do Bekaa, o grupo domina Baalbek, conhecida internacionalmente por suas ruínas romanas. Os principais aliados da organização são a Síria e o Irã, enquanto o Líbano busca estreitar relações com os EUA, França e outros países árabes. A primeira diferença de Dahieh para as demais partes de Beirute é quem exerce o controle sobre o que as pessoas fazem. Para um jornalista trabalhar no Líbano, basta dizer no aeroporto que é um sahaf (jornalista, em árabe) e, uma vez dentro do país, ir ao Ministério da Informação. Com o passaporte, uma carta de apresentação do jornal, um formulário e duas fotos, o repórter recebe uma credencial que, supostamente, permite a ele trabalhar em todo o país. Mas não em Dahieh. Para trabalhar na área do grupo xiita, é preciso dirigir-se ao escritório de informação do Hezbollah. Motoristas do centro de Beirute, de preferência xiitas e que estejam acostumados a trabalhar com a imprensa, levam os jornalistas até um prédio comum de Dahieh. Ali dentro, em um dos andares há uma placa amarela (cor do grupo) com os dizeres "Hezbollah Media Office", acompanhado do símbolo da organização. Funcionários da organização encaminham o jornalista para uma sala com quatro aconchegantes sofás, onde uma TV de plasma fica ligada na Al Manar - a rede de TV do Hezbollah. Em seguida, uma mulher com a cabeça coberta aparece e, em um inglês perfeito, pede para o jornalista preencher um formulário, entregar uma foto e o passaporte para que eles tirem cópia. A funcionária do Hezbollah pergunta ainda qual o tema da reportagem e o que exatamente se pretender fazer em Dahieh. Diferentemente do que ocorre no Ministério da Informação do Líbano, que dá a credencial imediatamente, o Hezbollah diz que precisa de 48 horas para fazer uma investigação sobre o jornalista e o órgão para o qual trabalha. O repórter do Estado já espera há cinco dias e, mesmo ligando diariamente, sempre ouve a mesma resposta. "Ainda não tomamos uma decisão." Sem ter a autorização, fica-se proibido pelo Hezbollah de entrevistar moradores e membros do grupo em Dahieh. A única saída é passear pela área como turista. Como em todas as cidades controladas pelo Hezbollah, os postes de Dahieh sempre têm as bandeiras amarelas com o símbolo verde do grupo. Também há fotos do que a organização chama de mártires - militantes que foram mortos por Israel ou que morreram em ações contra israelenses. A maior parte dos edifícios é modesta, mas há alguns prédios luxuosos. No Líbano, é raro ver uma mulher de burca: elas circulam apenas com a cabeça coberta. E mesmo em Dahieh, jovens usam jeans justos, óculos escuros e cabelos soltos. Na principal avenida, há uma moderna academia de ginástica onde homens e mulheres se vestem com roupas esportivas que seriam consideras comuns no Brasil. Há uma grande quantidade de propagandas da rede de fast-food KFC, que possui uma filial na área e outras no sul do Líbano. A única diferença é que a comida servida no KFC de Dahieh é halal (preparada seguindo as orientações islâmicas). No meio do bairro há um parque de diversões, também ligado ao Hezbollah. Postos de doação de dinheiro para entidades assistenciais da organização estão espalhados por toda parte. A polícia libanesa não está presente em Dahieh. São os integrantes do grupo que decidem, entre outras coisas, se o motorista pode cruzar determinada avenida ou estacionar o carro. No distrito, os membros do Hezbollah não têm medo de mostrar a cara. Eles andam com um colete cáqui e carregam comunicadores portáteis. No sul do Líbano, eles são mais discretos. Uma das principais marcas de Dahieh é a rede de TV Al Manar. Sua sede anterior foi destruída por Israel. Mas eles já ocupam um novo prédio, todo de vidro e de arquitetura moderna. A programação vai de novelas a telejornais. Em determinadas horas, é difícil dizer que se trata de um canal do Hezbollah. Mas, nos intervalos comerciais, são comuns hinos contra Israel, além várias imagens louvando o líder do grupo, xeque Hassan Nasrallah, e Imad Mughniyeh, que era o principal comandante militar da organização. HERÓI NACIONAL Morto num atentado em Damasco, em fevereiro, Mughniyeh era uma figura quase secreta dentro do Hezbollah até morrer. Quem insistia na existência e no poder de Mughniyeh eram os serviços de inteligência de Israel e dos EUA, que o acusaram de envolvimento em ações como o seqüestro de um avião da TWA nos anos 80. E eles estavam corretos. Atualmente, o comandante militar do Hezbollah está enterrado em Dahieh, onde seu corpo foi recebido como o de um herói nacional. Um memorial foi aberto para ele em Nabatieh, no sul do Líbano. No local, há uma exibição de tanques israelenses que foram destruídos pelo Hezbollah na guerra de 2006, roupas de soldados israelenses, baterias antiaéreas do grupo e mísseis Katiusha iguais aos que foram lançados contra o norte de Israel. Diante de um cubo de vidro, onde estão conservadas as roupas que Mughniyeh vestia, seus óculos, sua escova, agenda e todo o escritório que ele tinha em seu esconderijo em Damasco, crianças de menos de 12 anos prestam juramento no qual se comprometem com a resistência contra os israelenses. Depois, assistem a três filmes sobre o herói nacional da Hezbollândia. Ao final da projeção, as crianças podem comprar bugigangas com imagens de Nasrallah, Mughnyeh e do Hezbollah na loja do memorial. Um guia do local explicou que as crianças estudam em uma escola do grupo. Afinal, o governo libanês não tem condições de dar educação a todos. Uma reportagem do jornal governista e anti-Hezbollah Now Lebanon, publicado na internet, afirma que o governo libanês tem planos de intervir em Dahieh para combater a criminalidade, que estaria crescendo. Consultada pelo Estado, a professora da Universidade Americana de Beirute Mona Herb, que estuda a região, disse ser improvável que esse tipo de ação ocorra. Quando, em maio, o governo tentou intervir no sistema de comunicações do Hezbollah e acabar com o controle que o grupo tinha sobre o aeroporto, precisou recuar. Membros do grupo tomaram as ruas das áreas sunitas de Beirute, em uma clara demonstração de força. A desocupação só ocorreu dias depois, após acordo.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.