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Impeachment de Trump: Para juristas, defesa de presidente é 'disparate constitucional'

Na convenção constitucional, o consenso é de que uma conduta criminosa não é necessária para um impeachment; processo começa nesta terça

Por Charlie Savage
Atualização:

WASHINGTON - No processo de impeachment do presidente dos Estados Unidos, Donald Tump, que começa nesta terça-feira, 21, às 15h, no Senado, os advogados de Trump têm enfatizado cada vez mais um argumento: não é relevante se ele cometeu abuso na tentativa de intimidar a Ucrânia para interferir na eleição de 2020 em seu favor

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O argumento é que a Câmara nunca o acusou de cometer um crime ordinário, o que é amplamente contestado. E vai contra o consenso entre os estudiosos de que o impeachment existe para afastar autoridades que abusam do poder. "A frase 'crimes e delitos cometidos por uma alta autoridade” indica uma grave violação da fé pública que não necessita ser um crime ordinário", disse Frank O. Bowman, professor de Direito da Universidade do Missouri e autor de um recente livro sobre o assunto.

“Esse argumento é uma insensatez constitucional”, afirmou o professor. “O consenso quase universal - na Grã-Bretanha, nas colônias, nos Estados americanos entre 1776 e 1787, na convenção constitucional e desde então, tem sido de que a conduta criminosa não é necessária para o impeachment.

Mas é um argumento politicamente conveniente para Trump. Para qualquer senador republicano moderado que pode não gostar do que os fatos já mostraram sobre a campanha de pressão do presidente sobre a Ucrânia, a tese oferece uma justificativa para absolver o presidente.

De fato, se fosse verdade, então não existiria nenhuma razão para convocar testemunhas como John Bolton, antigo assessor de segurança nacional de Trump, porque o que ele e outros sabem a respeito das motivações e intenções do presidente no seu trato com a Ucrânia não afetará o resultado do julgamento.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que busca a reeleição em 2020 Foto: Fabrice Coffrini/AFP

A equipe de advogados de Trump insistiu nesta alegação na sua defesa por escrito, de 110 páginas, apresentada ao Senado na segunda-feira: “a teoria recém inventada de 'abuso de poder' pelos democratas da Câmara cai por terra desde o início porque não confirma nenhuma violação de qualquer lei”, alegaram os advogados.

Muitos especialistas jurídicos afirmam que os senadores não deverão levar esse argumento a sério. E apontam, entre outras coisas, para evidências mostrando que durante séculos antes da revolução americana o Parlamento britânico afastou autoridades “por crimes e delitos cometidos por uma alta autoridade” que constituíram abusos de poder, mas não eram passíveis de um indiciamento. Esse critério foi adotado pelos autores da Constituição, que subscreveram esse conceito.

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Estudiosos da matéria apontam para outros pontos de referência fundamentais. Em 1788, quando os defensores da Constituição exortaram os Estados a ratificar o documento, Alexander Hamilton descreveu a conduta passível de um impeachment em um dos Federalist Papers como “aqueles crimes e delitos oriundos da má conduta de homens públicos, ou, em outras palavras, do abuso ou da violação da fé pública” e outras infrações que afetam a sociedade.

Hamilton escreveu também que os processos de impeachment seriam distintos dos julgamentos comuns porque promotores e juízes não estariam tão limitados na determinação das transgressões cometidas”.

Críticos da tese defendida pela equipe de Trump também observaram que, quando a Constituição foi redigida, não havia leis penais federais escritas. E vários processos de impeachment anteriores - incluindo o caso de um juiz que presidiu um julgamento embriagado - não envolveram delitos imputáveis.

Está muito claro que a prática de um crime não é necessária nem suficiente para se tornar um ato que leve a um impeachment”, disse John Mikhail, professor de Direito da Universidade de Georgetown. Ele considera não só equivocados os argumentos dos advogados de Trump, como também acha que nem mesmo devem ser levados a sério.

Divergências

Mas Alan Dershowitz, importante defensor da tese, discorda. Emérito professor da faculdade de Direito de Harvard e prestigiado advogado criminal, ele faz parte da equipe legal de Trump e está preparando uma apresentação a respeito do assunto e que deve levar ao Senado na sexta-feira.

Entre outras coisas, Dershowitz disse em uma entrevista que, na sua interpretação, Hamilton não afirmou que qualquer violação da fé pública dá ensejo a um impeachment, mas que apenas crimes que também violam a fé pública atendem a esse critério.

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Ele disse ainda que houve alguns crimes contra a lei comum à época da ratificação da Constituição e que os seus autores esperavam que o Congresso com o tempo promulgasse leis de caráter penal que serviriam de base para futuros processos de impeachment.

Ele pretende basear sua apresentação num argumento oferecido no processo de impeachment do presidente Andrew Johnson (1868) pelo chefe da sua equipe de advogados, Benjamin Robbins Curtis, antigo juiz membro da Suprema Corte.

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Johnson foi salvo de uma condenação e da remoção do cargo quando a votação não teve a supermaioria necessária. Curtis argumentou que Johnson não era acusado de cometer um crime legítimo e que removê-lo do cargo sem aquela condição subverteria a estrutura constitucional e tornaria o impeachment um instrumento rotineiro de disputa política.

Mas outros estudiosos do Direito, como Laurence Tribe, especialista em direito constitucional e professor em Harvard e um crítico declarado de Trump, afirmou que Dershowitz extrapolou a interpretação deste aspecto do julgamento de Johnson, e também está tergiversando, especialmente face a outras evidências sobre o entendimento original de “crimes e delitos de alta autoridade” e a série de fatores que levaram à absolvição, por estreita maioria, de Johnson.

Em um artigo que escreveu para o The Washington Post, Laurence Tribe acusou os advogados de Trump de usarem “argumentos legais espúrios para induzir em erro o público americano ou os senadores que analisam o seu caso”.

Sob uma perspectiva o argumento pode não ser importante. Bowman notou que apesar de o artigo oferecido pela Câmara para o impeachment não se referir a nenhum estatuto criminal, a conduta descrita na acusação de abuso de poder “claramente se baseia no crime de suborno”. (O Escritório de Contabilidade do Governo também concluiu que o congelamento pelo governo de um pacote de ajuda aprovado pelo Congresso para a Ucrânia foi um confisco ilegal de fundos, mas não existem penalidades criminais envolvendo a violação dessa lei).

Donald Trump em sua participação no Fórum Econômico Mundial em Davos Foto: REUTERS/Denis Balibouse

Mas Dershowitz afirmou que se a Câmara tinha as evidências e os votos para acusar Trump de suborno então deveria afirmar isso explicitamente. “Meus argumentos serão muito sérios e eruditos”, disse ele. “O fato de outros estudiosos do Direito discordarem cabe ao Senado analisar. Há uma divisão e muitos especialistas discordam da minha opinião. Acho que estão errados”.

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Mas segundo Mikhail, Dershowitz e a equipe de advogados de Trump estão equivocados, observando que muitos senadores dos dois lados frequentaram faculdades de Direito ou têm conhecimento jurídico refinado.

“São pessoas muito inteligentes e informadas do ponto de vista legal. Eles conhecem a lei. E certamente enxergarão os estratagemas e os esforços para distrair e desviar sua atenção.” / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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