Índia jamais cauterizou as feridas de 1947

Tragédia ainda não tem explicação, mas relembra o abismo religioso aberto na independência

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Por Gilles Lapouge
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O espetáculo é ao mesmo tempo alucinante e banal. Ele enche de sangue as megalópoles do Ocidente e do Oriente. Deu um recital fúnebre no 11 de setembro de 2001, em Nova York, depois em Londres, Bali, Casablanca, Madri. Às vezes, é um avião lançado contra um arranha-céu. Em outras, são bancos, trens, metrôs que explodem. Em Mumbai (ex-Bombaim), capital financeira da Índia, foram hotéis de luxo e hospitais atacados com granadas e bombas por jovens delirantes.   Os estilos diferem. As motivações não são as mesmas. Os operários do terror pertencem a organizações variadas, mas o espetáculo é o mesmo: homens, mulheres e crianças mortos por atacado, corpos despedaçados, vísceras e sangue. A polícia indiana é circunspecta. Uma única informação: o massacre foi reivindicado por uma sociedade desconhecida, os Mujahedin do Deccan (região no centro da Índia) - um grupo desconhecido, mas que, aparentemente, entrou no mapa do terrorismo islâmico.   No entanto, há ainda dúvidas. Quem são eles? A morte terá sido distribuída a granel para satisfazer reivindicações ou, ao contrário, os matadores de Mumbai a inscrevem, como a Al-Qaeda, numa estratégia mundial, antiocidental? Algumas pistas. Os matadores pediram os passaportes de seus prisioneiros dos hotéis e separaram britânicos e americanos dos outros.   Isso ocorreu em Mumbai, a cidade onde os traços da colonização britânica são mais espetaculares. Nos jardins públicos da cidade, sobre gramados que poderiam estar em Oxford, as estátuas de bronze dos comodoros britânicos velam sobre os jovens estudantes indianos na saída de suas universidades.   O Hotel Taj Mahal, que estava em chamas na quarta-feira à noite, é um vestígio da belle époque britânica, com seu luxo, sua elegância, seus domos e seus campanários ornamentados. Sempre se espera surpreender Rudyard Kipling ou a rainha Vitória saindo dali.   Na frente do Taj ergue-se a Porta da Índia, um arco gigante abrindo para o cintilante Mar de Omã, que foi construído em 1911 para a visita do rei George V. Não há símbolo mais grandioso da faustosa colonização britânica e da partida dos colonizadores, em 1947.   Simbolismo   Esse cuidado de atacar alvos simbólicos e monumentos célebres, a multiplicidade dos ataques simultâneos, o enorme armamento dos terroristas, sua coragem insana, sua brutalidade, o desejo de fazer o maior estrago possível, tudo isso parece revelar que se trata de um grupo inspirado na Al-Qaeda. Essa ação pode ser interpretada, portanto, como um novo soluço do ódio antiocidental que gira em torno do globo desde 11 de setembro de 2001.   No entanto, as paixões propriamente nacionais não podem ser excluídas. Em Gujarat, vizinho ao Estado de Maharashtra, cuja capital é Mumbai, ocorreram perseguições de muçulmanas que deixaram 2 mil mortos, em 2002. As lembranças dessa tragédia assombram todos os muçulmanos. Outras matanças ocorreram depois, represálias lançadas pelos muçulmanos contra os indianos. Cada vez mais, mortos às centenas.   A Índia jamais cauterizou as feridas que ela abriu em sua própria carne no momento de sua independência, em 1947. Na época, a Índia britânica foi cortada em duas. De um lado (oeste), ficou o Paquistão, com 100 milhões de muçulmanos. Do outro, a Índia, com quase 1 bilhão de habitantes, na maioria hindus, mas com uma grande minoria de muçulmanos (150 milhões, 14% da população total). Desde 1947, o abismo aberto por essa partilha - feita na dor, com um milhão de mortos - jamais foi transposto. As duas populações se odeiam. Será o caso apontar o dedo para o Paquistão? Essa é a reação automática dos indianos sempre que uma bomba explode.   Eles vêem a mão do Paquistão, em guerra perpétua com a Índia, que reivindica uma parte das montanhas da Caxemira. Essas suspeitas foram fundadas há muito tempo, pois o Paquistão está tomado por radicais islâmicos, mesmo nos mais altos escalões do Exército e dos serviços de espionagem.   Desta vez, no entanto, a tese de que a culpa é do Paquistão é menos crível, pois as relações entre os dois países rivais melhoraram sensivelmente depois da aprovação de algumas medidas. Em setembro, o então presidente do Paquistão, Pervez Musharraf, foi obrigado a renunciar e ceder seu lugar - após alguns golpes trágicos de teatro, entre eles o assassinato da ex-primeira-ministra Benazir Bhutto - para Asif Ali Zardari, viúvo de Benazir.   Zardari modificou radicalmente a abordagem do problema indiano, pronunciando discursos tão bizarros que seus aliados políticos o consideraram louco. Ao jornal The Wall Street Journal, ele declarou: "A Índia nunca foi uma ameaça ao Paquistão." Ele chegou a qualificar de "terroristas" os separatistas paquistaneses da Caxemira indiana, que até aqui eram celebrados pelo Paquistão como "heróis da liberdade".   Fundamentalismo   Por que essa mudança radical? Zardari calcula que a Índia e o Paquistão, por mais rivais que sejam, têm um inimigo em comum: o radicalismo islâmico. Esse radicalismo, nutrido e reforçado dia após dia pelo Taleban em sua luta contra o Ocidente no Afeganistão, vizinho do Paquistão, ameaça, se não for combatido, mergulhar o Paquistão no abismo do terror. E a Índia sofreria o mesmo destino.   Eis porque o presidente do Paquistão inverte o discurso de seu país e faz frente comum com a Índia contra o fundamentalismo islâmico, seja ele da Al-Qaeda ou do Taleban afegão. Ao que parece, o presidente eleito dos EUA, Barack Obama, já estaria acompanhando, em segredo, a ofensiva do Paquistão para recuperar a confiança dos indianos.   No entanto, o jogo de Zardari é vertiginoso. O Paquistão está cheio de mulás enfurecidos e escolas corânicas que ensinam a guerra santa. E cúmplices da Al-Qaeda, como seus amigos do Taleban, ocupam postos nevrálgicos no Exército e na administração paquistaneses.   Incertezas   Assim, mesmo que no fundo o presidente Zardari deseje encerrar o conflito com a Índia e não sustentar operações como as da noite retrasada em Mumbai, é imaginável que paquistaneses, militares talvez, tenham apoiado a façanha dos fanáticos que atacaram a cidade.   Muitas perguntas, poucas certezas. Seja qual for a hipótese, o perigo é máximo, quer se trate de um golpe contra o Ocidente da Al-Qaeda, de uma resposta longínqua aos horrores da partilha de 1947 ou de uma operação montada em concerto com certas fileiras do Paquistão para ajudar os radicais islâmicos do Afeganistão. Será preciso, portanto, acostumar-se com isso. A Índia é agora, como se desconfiava alguns anos atrás, uma das maiores incubadoras do radicalismo islâmico, que está ressurgindo em uma de suas variantes mais odiosas.

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