Insatisfação derruba popularidades e acentua crises na América do Sul

Onda antiestablishment que atinge o continente se agravou em países cujos presidentes já apresentavam índices de aprovação em queda; convulsões sociais ignoram ideologia e desestabilizam governos tanto de esquerda quanto de direita 

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Foto do author Fernanda Simas
Foto do author Luiz Raatz
Por Fernanda Simas e Luiz Raatz
Atualização:

Desde outubro, uma onda antiestablishment atingiu a América do Sul, causando convulsões sociais e agravando a crise de governos tanto de esquerda quanto de direita. A insatisfação, de cunho econômico ou político, derrubou a popularidade dos presidentes sul-americanos, o que ajudou a colocar ainda mais lenha na fogueira dos confrontos, que deixaram ao menos 38 mortos e 4.700 feridos.

“Já tivemos outros governos com pouca aprovação, mas sem protestos desse tamanho. Agora, a baixa popularidade é uma causa e uma consequência. Há uma correlação”, disse ao Estado o cientista político Frédéric Massé, da Universidade Externado da Colômbia, de Bogotá.

Estudantes voltaram a pular ontem as catracas do metrô em Santiago, em desafio ao governo de Piñera; protestos começaram assim em outubro Foto: Javier Torres/AFP

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No Chile, o presidente Sebastián Piñera assumiu o cargo em 2018 com 51% de aprovação. Em outubro, pouco antes dos protestos, o índice era de 31%. O estopim da insatisfação foi de cunho econômico, o aumento do preço da passagem de ônibus: de 800 pesos (R$ 4,10) para 830 pesos (R$ 4,26). Ao longo das manifestações, a crise se somou a outras demandas populares, como a mudança da Constituição – que data da ditadura de Augusto Pinochet.

No Equador, o estopim foi o anúncio do corte dos subsídios no preço do combustível, em vigor há 40 anos, e a redução dos benefícios do setor público. O presidente Lenín Moreno, que contava com 65% de aprovação quando assumiu o cargo, em 2017, chegou a 31% após adotar ajustes econômicos coordenados com o FMI. 

A insatisfação popular também derrubou a popularidade de Iván Duque, presidente da Colômbia, e de Evo Morales, da Bolívia. Em ambos os casos, a crise é mais política do que econômica. 

Na Colômbia, Duque assumiu em 2018 com 53,8% de aprovação. Após deixar de cumprir partes do acordo de paz fechado por seu antecessor com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e ser acusado de negligenciar políticas voltadas para líderes camponeses, perdeu apoio. Pouco antes de os protestos começarem, ele tinha aprovação de apenas 26% dos colombianos. 

Na Bolívia, o desgaste com o governo de Evo, que durou quase 14 anos, culminou com acusações de fraude na eleição de 20 de outubro – as denúncias foram comprovadas por uma missão da OEA. Isolado pelos protestos de rua, pela pressão do empresariado de Santa Cruz e sem apoio dos militares, ele renunciou e partiu para o exílio no México

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A onda atual de protestos de largo espectro desafia também a análise tradicionalmente simplificada da história latino-americana. Nos anos 60, era a cruzada socialista de Fidel Castro contra o imperialismo ianque. Os anos 80 foi a “década perdida” da estagnação econômica. Nos anos 90, a virada do neoliberalismo, seguida por uma “maré rosa” de governos esquerdistas, nos anos 2000.

Agora, o pêndulo político que oscilava entre esquerda e direita parece ter desaparecido. A onda de protesto tem obrigado os acadêmicos a superarem a simplificação histórica e buscarem análises mais sofisticadas. 

Michael Shifter, do centro de estudos Diálogo Interamericano, aponta o papel incomum do celular nas manifestações recentes na América do Sul. Além de ajudar a concentrar multidões, a era da informação trouxe exemplos de outros cantos do mundo, como Hong Kong, França e Iraque, e apresentou um padrão de vida que muitos na região deixaram de ter. 

Manifestantes pró-democracia gritam slogans em um shopping center em Hong Kong. Foto: Dale de la Rey /AFP 

“É um ressentimento generalizado contra quem detém serviços”, lembra Shifter. “Essas pessoas querem mais direitos e, muitas vezes, são questões difíceis de quantificar, como o acesso à Justiça e a serviços públicos de qualidade.”

Em paralelo, segundo ele, as bolhas e a disseminação de notícias falsas aumentam a radicalização política. “As pessoas estão com muita raiva, em um nível poucas vezes visto”, afirma Shifter. “Além disso, parecem dispostas a tolerar um alto grau de violência.” 

Para Massé, as manifestações estão sendo instrumentalizadas por elementos extremos, mas analisar a crise exige muito mais do que isso. “São protestos contra diferentes tipos de governos. Os fatores em comum são a insatisfação e a vontade de ter mais voz dentro da política.” / COLABORARAM CARLA BRIDI e MURILLO FERRARI

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