Israel usa reconhecimento facial para monitorar palestinos, dizem ex-soldados

Segundo militares que abandonaram o Exército israelense, mecanismos de reconhecimento facial são ligados a uma crescente rede de câmeras e smartphones; palestinos se dizem vigiados e Exército não comenta o caso

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Por Elizabeth Dwoskin
Atualização:

HEBRON, Cisjordânia — O Exército de Israel está colocando em prática um amplo esforço de vigilância na Cisjordânia ocupada para monitorar palestinos, integrando mecanismos de reconhecimento facial a uma crescente rede de câmeras e smartphones, segundo relatos de ex-soldados israelenses a respeito do programa. 

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A iniciativa de vigilância, implementada há dois anos, envolve, em parte, uma tecnologia de smartphone chamada Blue Wolf (Lobo Azul), que captura fotos dos palestinos e associa as imagens a um banco de dados tão extenso que um ex-militar o descreveu como “o Facebook secreto do Exército para os palestinos”. O aplicativo de telefone alerta os soldados com diferentes cores, informando se a pessoa deve ser detida, presa ou deixada em paz. 

Para construir o banco de dados usado pelo Blue Wolf, uma competição de fotografia foi organizada entre os soldados israelenses no ano passado, na qual os militares faziam imagens de palestinos — incluindo crianças — e eram premiados segundo a maior quantidade de registros que suas unidades realizavam. O número total de pessoas fotografadas é desconhecido, mas é estimado, no mínimo, na casa dos milhares.  

Câmera de monitoramento israelense em Hebron, na Cisjordânia Foto: Photo for The Washington Post by Kobi Wolf

O programa de vigilância foi descrito em entrevistas conduzidas pelo Post com dois ex-militares de Israel e outros quatro relatos independentes de soldados dispensados recentemente ao grupo israelense de defesa de direitos Quebrando o Silêncio que posteriormente foram compartilhados com o Post. Grande parte do programa não havia sido revelada anteriormente. Ainda que o exército de Israel tenha reconhecido a existência da iniciativa em uma publicação online, as entrevistas com os ex-soldados oferecem a primeira descrição pública da abrangência do programa e suas operações. 

Adicionalmente ao Blue Wolf, os militares israelenses instalaram câmeras de escaneamento facial na cidade dividida de Hebron, para ajudar soldados israelenses que trabalham nos postos de controle locais a identificar os palestinos antes mesmo deles apresentarem seus documentos de identidade. Uma rede mais ampla de câmeras de circuito interno, apelidada de “Hebron, cidade inteligente", fornece monitoramento em tempo real da população da cidade e, segundo afirmou um ex-soldado, em alguns casos consegue registrar imagens dentro das residências.

Em resposta a questionamentos a respeito de seu programa de vigilância, as Forças de Defesa de Israel, ou IDF, na sigla em inglês, afirmaram que “operações de segurança rotineiras” são “parte da luta contra o terrorismo e dos esforços de melhorar a qualidade de vida da população palestina na Judeia e Samaria”. (Judeia e Samaria é o nome que Israel adota oficialmente para se referir à Cisjordânia.)  

“Naturalmente, não podemos revelar capacidades operacionais das IDF nesse contexto”, acrescentou o comunicado.

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Monitoramento contínuo

Os ex-militares que foram entrevistados para esta reportagem e conversaram com a ONG Quebrando o Silêncio, uma entidade composta por veteranos do exército israelense que se opõem à ocupação, falaram sobre o programa de vigilância sob condição de anonimato, por medo de repercussões sociais e profissionais. O grupo afirmou que planeja publicar sua pesquisa. 

Os ex-soldados afirmaram que os militares lhes informaram que os esforços representavam um poderoso aumento em suas capacidades de defender Israel contra terroristas. Mas o programa também demonstra a maneira como tecnologias de vigilância que provocam discussões acaloradas em democracias ocidentais estão sendo usadas furtivamente em lugares onde há menos liberdade.  

“Coloquemos desta maneira: eu não ficaria à vontade se eles usassem isso no shopping [da minha cidade]”, afirmou uma militar israelense recentemente dispensada, que trabalhou em uma unidade de inteligência do exército. “As pessoas se preocupam com impressões digitais, mas isso é muito pior.” Ela disse ao Post que resolveu revelar publicamente a existência do sistema de vigilância em Hebron por considerá-lo uma “total violação da privacidade de um povo inteiro”. 

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

O uso israelense de ferramentas de vigilância e reconhecimento facial parece uma das mais elaboradas aplicações desse tipo de tecnologia por um país que busca controlar uma população sujeita a ocupação, de acordo com especialistas da AccessNow, organização que defende direitos civis no ambiente digital.  

Dentro de Israel, uma proposta de autoridades policiais para introduzir câmeras com tecnologia de reconhecimento facial em espaços públicos atraiu oposição substancial, e a agência do governo encarregada de proteger privacidade atacou a proposta. Mas Israel aplica padrões diferentes nos territórios ocupados. 

“Enquanto países desenvolvidos de todo o mundo impõem restrições a fotografias, reconhecimento facial e vigilância, a situação descrita [em Hebron] constitui uma grave violação de direitos básicos, como o direito à privacidade, enquanto os soldados são incentivados a coletar o máximo possível de imagens de homens, mulheres e crianças palestinos, em tipo de competição”, afirmou Roni Pelli, advogada da Associação por Direitos Civis de Israel, após ser informada a respeito do esforço de vigilância. Ela afirmou que “os militares devem desistir imediatamente” da iniciativa. 

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Cidade de Abu Dis, na Cisjordânia: palestinos têm sido monitorado por câmeras e banco de imagens, segundo ex-soldados israelenses Foto: HAZEM BADER / AFP

Últimos resquícios de privacidade

Yaser Abu Markhyah, palestino de 49 anos, pai de quatro, afirmou que sua família vive em Hebron há cinco gerações e aprendeu a conviver com postos de controle, restrição de movimento e questionamentos frequentes de soldados depois que Israel tomou a cidade, na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Mais recentemente, porém, ele afirmou que a vigilância tem furtado as pessoas dos últimos resquícios de privacidade que ainda possuíam. 

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“Não nos sentimos mais à vontade para sociabilizar, porque as câmeras estão sempre nos filmando”, afirmou Abu Markhyah. Ele afirmou que não permite mais que seus filhos brinquem em frente de casa e que parentes que vivem em bairros menos vigiados evitam visitá-lo. 

Hebron é um tradicional foco de violência, com um enclave de colonos israelenses linha-dura, fortemente armados, próximo à Cidade Velha, cercado de centenas de milhares de palestinos, e a segurança dividida entre o exército de Israel e a administração palestina.  

No bairro em que Abu Markhyah vive em Hebron, próximo ao Túmulo dos Patriarcas, um local sagrado para muçulmanos e judeus, câmeras de vigilância foram instaladas a cada 100 metros, incluindo em telhados de residências. E ele afirmou que o monitoramento em tempo real parece estar se intensificando. Poucos meses atrás, disse ele, sua filha de 6 anos deixou cair uma colher de chá da varanda de sua casa e, apesar da rua estar aparentemente vazia, soldados apareceram pouco depois afirmando que ele seria indiciado por jogar pedras.  

Issa Amro, vizinho de Abu Markhyah que coordena o grupo Amigos de Hebron, apontou para várias casas vazias em seu quarteirão. Ele afirmou que as famílias palestinas se mudaram, por causa das restrições e da vigilância. 

“Eles querem dificultar a nossa vida tanto, até um ponto que não aguentemos mais e nos mudemos por conta própria, para que os colonos possam ocupar o espaço”, afirmou Amro.

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Incentivos para fotos

A iniciativa Blue Wolf combina um aplicativo de smartphone com um banco de dados pessoais acessível nos aparelhos, de acordo com seis ex-militares entrevistados pelo Post e pela Quebrando o Silêncio.

Segundo um deles, esse banco de dados é uma versão reduzida de um banco de dados vasto, chamado Wolf Pack (Alcateia), que contém perfis de virtualmente todos os palestinos que habitam a Cisjordânia, com fotos dos indivíduos, registros familiares, de educação e de segurança que classificam todas as pessoas. Este soldado era familiarizado pessoalmente com o Wolf Pack, que é acessível somente em computadores de ambientes mais seguros. (Ainda que este ex-soldado tenha descrito a base de dados como o “Facebook dos palestinos”, a ferramenta não é conectada com o Facebook.) 

Outro ex-militar afirmou ao Post que sua unidade, que patrulhava as ruas de Hebron em 2020, foi encarregada de coletar o máximo possível de imagens de palestinos certa semana, usando um antiquado smartphone distribuído pelo exército, tirando fotos durante missões diárias que duravam oito horas. Os soldados subiam as fotos por meio do aplicativo Blue Wolf instalado nos telefones. 

Este ex-soldado afirmou que as crianças palestinas com frequência posavam para as fotos, mas pessoas mais velhas — particularmente mulheres idosas — costumavam resistir. O ex-militar afirmou que forçar as pessoas a serem fotografadas lhe pareceu traumático. 

Centenas de fotos eram registradas pelas unidades militares a cada semana, um ex-soldado afirmou que a meta era pelo menos 1,5 mil. Destacamentos do exército espalhados pela Cisjordânia competiam por prêmios, como noites de folga, que eram concedidos aos militares que tiravam mais fotos, afirmaram ex-soldados. 

Com frequência, quando um soldado tira a foto de alguém, o aplicativo estabelece uma correspondência com um perfil existente no sistema Blue Wolf. A aplicativo, então, sinaliza amarelo, vermelho ou verde para indicar se a pessoa deve ser detida, presa imediatamente ou ter a passagem permitida, de acordo com os relatos de cinco soldados e uma captura de tela do sistema obtida pelo Post. 

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Um outro aplicativo de smartphones, chamado White Wolf (Lobo Branco), foi desenvolvido para uso de colonos judeus que ocupam a Cisjordânia, um ex-soldado afirmou à Quebrando o Silêncio. Apesar de colonos não terem autorização para deter pessoas, voluntários em segurança podem usar o White Wolf para escanear documentos de identificação de palestinos que queiram entrar em algum assentamento, por exemplo, para prestar serviços em construções. Em 2019, os militares reconheceram a existência do White Wolf em uma publicação de direita. 

Israel não comenta o caso

O Exército de Israel não fez comentários sobre preocupações a respeito do uso da tecnologia de reconhecimento facial. 

A Fundação para Tecnologia de Informação e Inovação afirmou que estudos que demonstram imprecisões dessa tecnologia foram exagerados. Objetando-se à proposta de banimento na Europa, o grupo afirmou que o tempo seria mais bem gasto na elaboração de salvaguardas para garantir o uso apropriado da tecnologia por forças de segurança e no desenvolvimento de padrões de desempenho para os sistemas de reconhecimento facial usados pelo governo. 

Na Cisjordânia, porém, essa tecnologia é meramente “mais um instrumento de opressão e submissão do povo palestino”, afirmou Avner Gvaryahu, diretor-executivo da Quebrando o Silêncio. “Ao mesmo tempo em que vigilância e privacidade estão em destaque na discussão pública global, vemos neste caso outra lamentável assunção, por parte do governo israelense e do exército, de que, quando se trata de palestinos, direitos humanos fundamentais são simplesmente irrelevantes”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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