'Já vivemos em um mundo de extremos climáticos', diz José Marengo

Climatologista afirma que onda de calor no Canadá provavelmente sofre efeito da ação humana no aquecimento global e defende transformação globalizada para conter danos

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Por Renato Vasconcelos
Atualização:

Ondas de calor como a vista no Canadá nas últimas semanas estão cada vez mais frequentes, mas não são o único fenômeno extremo que deve aumentar em intensidade nos próximos anos. Já vivemos em uma era de extremos, de acordo com o climatologista José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

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Em entrevista ao Estadão, Marengo afirmou que é cedo para detalhar o peso exato do aquecimento global - a ação humana sobre o clima - no caso específico do Canadá, apesar das evidências apontarem nesta direção, mas que o agravamento de ondas de calor e de frio, assim como de temporadas de secas e de chuvas excessivas já são uma realidade.

"Quando falamos em extremos, não estamos falando apenas desta onda de calor. Se você lembrar, o inverno do hemisfério norte também bateu temperaturas recordes de frio e aqui nós tivemos secas. Agora temos essa onda de frio no sul... Todos esses extremos estão acontecendo justamente como consequência do aquecimento global".

Lytton, cidade do interior da Colúmbia Britânica, foi a mais duramente atingida pela onda de calor que atingiu o Canadá. Foto: JR Adams/Handout via REUTERS

Leia a entrevista:

O que está causando esse aumento de temperatura recorde no Canadá e nos Estados Unidos?

O que causou o aumento da temperatura que vimos nesses dois países foi uma mudança na circulação atmosférica, algo similar ao que acontece aqui no Brasil e nós chamamos de bloqueio.

Formou-se um centro de alta pressão atmosférica, o que acarreta em temperaturas muito altas e secura do ar. É como se um domo de calor se formasse sobre a região, não permitindo a entrada de ar frio, o que impede que haja chuva. E isso está crescendo cada vez mais em intensidade. Por isso a temperatura chegou a mais de 49º C em algumas cidades.

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Esse fenômeno é efeito das mudanças climáticas?

As ondas de calor são um fenômeno que já ocorriam no passado, mas não eram tão fortes e nem tão frequentes como agora. Desde 2010, basicamente todos os anos se tem uma onda de calor. A costa Oeste dos Estados Unidos enfrentou uma onda de calor no ano passado - o que explica, em parte, os incêndios florestais que vimos na Califórnia. 

O curioso neste ano é que isso tenha se estendido ao Canadá, em regiões onde normalmente as temperaturas não são tão altas. É um fenômeno, por se dizer, sem precedentes para o país.

Alguns estudos passados já tinham identificado a "impressão digital" da mudança climática - ou seja, da ação humana sobre o clima - ocasionando ondas de calor nos Estados Unidos. É cedo para dizer que essa onda no calor especificamente é (efeito da) mudança climática, mas possivelmente sim.

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Então, com o nível de evidência científica que temos hoje, é possível dizer que esses fenômenos extremos serão comuns nos próximos anos?

Quando falamos em extremos (climáticos), não estamos falando apenas desta onda de calor. Se você lembrar, o inverno do hemisfério norte também bateu temperaturas recordes de frio e aqui nós tivemos secas. Agora temos essa onda de frio... Todos esses extremos estão acontecendo justamente como consequência do aquecimento global.

E quando digo aquecimento global, é o aquecimento gradativo da temperatura média do mundo, que é um processo natural, mas que as atividades humanas, principalmente a queima de combustíveis fósseis, estão se agravando. Coisas que esperávamos que fossem acontecer daqui a 60 ou 100 anos já estão acontecendo.

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José Antonio Marengo,coordenador geral de pesquisas e desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) Foto: Wanezza Soares / Arquivo Pessoal

E qual é a chance imediata de uma onda de calor com a intensidade vista no Canadá se repetir no Brasil?

Não é algo tão evidente. Ao contrário do hemisfério norte e do Canadá especificamente, quando você vai a latitudes mais altas na América do Sul, o continente se estreita. Ou seja, a área do continente, de um possível impacto, lá é maior.

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Autores apontam que tivemos uma onda de calor no sul do Brasil, que coincidiu com a seca no Pantanal - no que chamamos de um evento composto, com seca e calor ao mesmo tempo. E essa onda de calor se registrou ao mesmo tempo na Amazônia do Peru, na Bolívia, no norte da Argentina, no Paraguai... Foi uma onda grande em termos meteorológicos, mas teve poucos mortos, porque temperaturas altas em países tropicais têm menos impacto.

Em termos de extremos, uma onda de calor com o impacto que está tendo no Canadá, é pouco provável.

Com que tipo de efeito do aquecimento global devemos nos preocupar mais no país?

Muitas pessoas acham que aquecimento global significa literalmente aquecimento. Dizem: "ué, mas como que tem tanto frio?". É que o aquecimento global produz extremos climáticos, e os extremos podem ser quentes, secos, frios, chuvosos ou uma combinação deles.

No nosso caso, que é o caso de um país tropical como o Brasil, creio que o extremo que mais nos incomodaria seria a seca. Mas, em algumas áreas, o excesso de água também seria um grande problema. Você pode ter excesso de chuva em algumas áreas, mas não nas áreas onde deveriam chover, como na Cantareira, por exemplo.

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Existe alguma maneira de prever e evitar que fenômenos como esses se repitam? Como fazer com que eles cessem ou se reduzam ao mínimo?

Em princípio, se pensou nisso no Acordo de Paris, que se o aquecimento fosse de 1,5ºC ou pelo menos não superior a 2ºC, o dano seria relativamente menor. De lá para cá já aumentamos 1,2ºC. Ou seja, aquela meta já virou utopia.

Apenas uma transformação globalizada, com mudança de hábitos individuais e compromissos coletivos podem nos ajudar. Fazer uma adaptação qualquer não resolve.

Já estamos vivendo um mundo de extremos e as pessoas têm que admitir isso, o governo tem que admitir isso, e começar a se preparar. Os impactos estão aí e não temos mais como reverter, mas o que podemos fazer é reduzir os prejuízos ao máximo.

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