Jogo milenar reproduz cenário de violência afegão

Buzkashi tem poucas regras, muitos jogadores e disputa por poder

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Por Redação
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Dizem que só é possível compreender o Afeganistão após assistir a uma partida de buzkashi. Nos montes da cordilheira de Hindu Kush, guerreiros das tribos usbeque disputavam a caça sobre cavalos selvagens, como forma de treinamento para a luta. Seu insuperável domínio do animal teria impedido o avanço de invasores desde Alexandre, o Grande e nos muitos séculos seguintes. Motivo de orgulho nacional, o jogo atrai centenas de afegãos para os pés das montanhas, ao norte de Cabul. Era uma ensolarada e fria manhã de sexta-feira. Num campo de terra, cavaleiros aguardavam a chegada de Muhammad Fahim, ex-comandante da Aliança do Norte que ajudou a expulsar os soviéticos (1979-1989) do país com armas e dólares da CIA. Ele integrou o governo do presidente Hamid Karzai e é hoje um dos mais ricos e poderosos homens do Afeganistão, um "senhor de guerra". No centro do campo, o prêmio que os lutadores disputarão: uma cabra sem cabeça. O cenário lembra uma arena romana. Exceto pelo fato de que Fahim atravessa o campo em uma picape preta 4x4 nova, sob o olhar de seguranças sobre o telhado de sua mansão de inverno, onde o jogo ocorre. A plateia, só de homens exceto pela repórter, levanta-se em reverência. Fahim dirige-se a uma tribuna onde se senta ao lado de convidados a quem, num país dominado pelo ópio, os afegãos se referiram como senhores das drogas. Eles exibem seu poder fazendo ofertas generosas aos jogadores. O time do Vale do Panshir (de vermelho), controlado por Fahim, é favorito e ele oferece US$ 1 mil ao vencedor de cada partida. O outro time, de preto, seria patrocinado por Haji Hamidullah, preso em Guantánamo por cinco anos. O terceiro, de azul, representa a Província de Khorasan, reduto de senhores de guerra. Banido pelos taleban, o buzkashi é um símbolo de poder. "Quem mais teria dinheiro para comprar cavalos, pagar treinadores e patrocinar times nesse país, a não ser políticos corruptos, senhores de guerra e narcotraficantes?", pergunta o tradutor. O jogo começa. Os lutadores se dividem em três times e, enquanto um tenta dominar o bicho morto, os outros tentam derrubar o adversário dos cavalos que, chicoteados e levados ao limite, às vezes caem exaustos. Na maior parte do tempo, os jogadores se amontoam num embate caótico. O antropólogo americano Whitney Azoy costuma comparar o buzkashi ao cenário político afegão: poucas regras e muitos jogadores em uma disputa violenta por poder e dinheiro, em que todos os meios justificam os fins. Em meio ao caos, um cavaleiro emerge, carregando o peso de 50 quilos da cabra morta com uma das mãos. Ele contorna a bandeira, outros tentam derrubá-lo, mas ele consegue seguir até o outro lado do campo. Sua vitória depende de força e coragem, valores centrais da cultura afegã. O objetivo é levar a cabra até o círculo desenhado no chão, o hallal, que significa "círculo da Justiça". É para onde os afegãos comuns gostariam que se dirigisse seu país.

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