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Johnson reaviva desejo de reunificação das Irlandas com Brexit sem acordo

Além de atiçar busca escocesa por independência, ameaça de premiê de deixar a União Europeia sem acordo pode prejudicar tratado de paz irlandês

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Por Redação
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LONDRES - A ameaça do Reino Unido de deixar a União Europeia sem um acordo, repetida diversas vezes nos últimos dias pelo premiê Boris Johnson, reavivou o desejo de unificação da Irlanda e Irlanda do Norte e pode ameaçar o processo de paz que pôs fim a três décadas de guerra entre os dois países e deixou ao menos 3.600 mortos. As declarações também atiçaram o desejo de independência da Escócia.

O secretário da Irlanda do Norte Julian Smith e o primeiro ministro do Reino Unid, Boris Johnson, antes de reunião sobre o Brexit Foto: POOL/AFP

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Johnson esteve na quarta-feira, 31, na Irlanda do Norte, após visitar a Escócia e o País de Gales na segunda e na terça, com o objetivo de apresentar seus planos para o Brexit e tentar angariar apoio dos países para endurecer as negociações com a União Europeia. O premiê se encontrou com os principais partidos da região para tratar do assunto.

 A presidente do principal partido nacionalista irlandês, o Sinn Fein, fez um alerta ao premiê: convocará um referendo sobre a reunificação das duas Irlandas se o país deixar a União Europeia (UE) sem um acordo.

“Pedimos que ele não se renda aos unionistas e não se transforme no mensageiro do DUP”, disse a presidente da legenda, Mary Lou McDonald,referindo-se aos integrantes do Partido Democrático Unionista, majoritário entre a comunidade protestante e partidário de um “Brexit duro”. O partido tem dez deputados no Parlamento de Londres, o que permite a Johnson e ao Partido Conservador governar sem necessidade de outros apoios.

Johnson, parlamentares eurocéticos e os unionistas irlandeses querem eliminar dos termos do acordo com a UE uma controvertida salvaguarda para evitar a reintrodução de uma “fronteira física” entra a Irlanda, membro da UE, e a província britânica da Irlanda do Norte. Para eles, o fim da salvaguarda, chamada de “backstop”, é necessária para o Brexit se consolidar e para o Reino Unido não perder a soberania sobre o território norte-irlandês.

Mas a construção de um eventual posto de fronteira seria contrário a um dos pontos-chave do acordo de paz de Sexta-Feira Santa, que pôs fim, em 1998, ao conflito histórico entre os católicos, republicanos e nacionalistas, e os favoráveis à união com o Reino Unido, chamados de unionistas, em sua maioria protestantes.

Embora os governos de Dublin e Bruxelas tenham reiterado que a cláusula irlandesa é “intocável”, Johnson quer suprimi-la e, se não conseguir, advertiu que tirará seu país do bloco europeu em 31 de outubro, com ou sem um acordo.

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“Seu curso de ação parece estar encaminhado para um Brexit desordenado e selvagem. Dissemos que isso seria catastrófico para a economia irlandesa, para nossa sociedade, para nossos políticos e para nossos acordos de paz”, ressaltou McDonald. “É impensável que Johnson não inclua em seus planos de contingência a convocação de um referendo sobre a reunificação irlandesa.”

Os comentários de McDonald surgem dias depois de o chefe de governo da Irlanda, Leo Varadkar, dizer que a questão da unificação da Irlanda e da Irlanda do Norte governada pelos britânicos inevitavelmente surgiria se o Reino Unido deixasse a União Europeia sem um acordo. “Elementos do nosso establishment político nos dizem que agora não é hora de discutir a unidade irlandesa. Eles estão errados. Agora é exatamente o momento certo para discuti-la”, disse ele. “O governo precisa começar a planejar a união.”

Os escoceses também avaliam um possível pedido de referendo para decidir sobre sua separação do Reino Unido. Enquanto Inglaterra e País de Gales votaram pela saída do Reino Unido da União Europeia, mais de 60% da Escócia votou para ficar. Na capital, Edimburgo, três em cada quatro habitantes não querem deixar o bloco.

O governo comandado pelo Partido Nacional Escocês (SNP) prevê que o Brexit deixará os escoceses em média US$ 3.000 por ano mais pobres, acabará com 80 mil empregos e contaminará o ambiente de negócios por décadas. Por isso, o sentimento generalizado é o de que o Brexit pode terminar com uma união de mais de 300 anos. A líder do SNP, a primeira-ministra Nicola Sturgeon, descreve o plano do Brexit como “totalmente caótico”, e já afirmou que só vai esperar o desenrolar do processo para convocar o plebiscito.

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Para Amanda Sloat, uma ex-funcionária do Departamento de Estado e especialista em Brexit na Brookings Institution, em Washington, a maneira como o processo do Brexit tem sido conduzido facilita a ascensão do discurso separatista.

“Tanto norte-irlandeses quanto escoceses votaram para permanecer na União Europeia, e desde que o voto pela saída ganhou, sentem que é o momento de pleitearem a própria saída, por um desejo de se manterem ligados à Europa”, diz Sloat ao Estado. “No caso da Irlanda do Norte, no entanto, esse processo é perigoso, porque pode reavivar um sentimento ainda latente e recente de confronto e ódio entre os que defendem a permanência no Reino Unido e os nacionalistas que querem a unificação com a Irlanda.”

Estados Unidos

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Na terça-feira, parlamentares americanos tanto do Partido Democrata quanto do Republicano ameaçaram bloquear o acordo comercial entre EUA e Reino Unido caso o Brexit afete a fronteira irlandesa e coloque em risco a paz na Irlanda do Norte. Os EUA foram o principal intermediador do acordo de paz, e até hoje mantêm no país um alto diplomata encarregado de acompanhar o processo.

“A participação americana no acordo da Sexta-Feira Santa é indispensável”, disse na quarta-feira ao jornal The Guardian Richard Neal, que é copresidente da bancada da Amigos da Irlanda no Congresso, e também preside o poderoso comitê de recursos da Casa.  “Nós supervisionamos todos os acordos comerciais como parte de nossa jurisdição fiscal”, disse Neal, congressista democrata de Massachusetts. “Eu teria pouco entusiasmo em receber um acordo comercial bilateral com o Reino Unido, se eles pusessem em risco o acordo.”

Pete King, o copresidente republicano do grupo Amigos da Irlanda, disse que a ameaça de reinstalar o posto de fronteira, que poderia pôr em perigo a fronteira aberta, é uma “provocação desnecessária”, acrescentando que seu partido não teria problemas em desafiar Trump sobre o assunto. “Eu acho que qualquer um que tenha uma forte crença na Irlanda do Norte e no acordo da Sexta-Feira Santa com a fronteira aberta certamente estará disposto a ir contra o presidente”, disse King.

Boris Johnson apresentou um acordo comercial com os EUA como forma de compensar os custos econômicos de deixar a UE, e Donald Trump prometeu que os dois países poderiam chegar a “um acordo comercial muito substancial” que aumentaria o comércio “quatro ou cinco vezes”.

Para Entender

Quando a Ilha da Irlanda se tornou independente do Reino Unido em 1922, formando a República da Irlanda, o extremo norte da ilha, habitado majoritariamente por protestantes de ascendência inglesa, permaneceu sob o controle do Reino Unido, com o nome de Irlanda do Norte.

Durante mais de 70 anos, essa província britânica foi fonte de conflitos, guerras e terrorismo, provocados pela intolerância mútua entre protestantes (pró-Reino Unido), conhecidos como Unionistas, e católicos de ascendência irlandesa, que se consideravam colonizados pelos britânicos.

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Só em 1998, as duas partes se reconciliaram na assinatura do Acordo da Sexta-Feira Santa, que concedeu mais autonomia política à Irlanda do Norte e suspendeu a fronteira física com a República da Irlanda. Foi esse acordo, negociado durante anos, que deu fim ao terrorismo do IRA (Exército Republicano Irlandês), cujos membros, católicos, fundaram o partido político Sinn Féin.

Atualmente, milhares de pessoas atravessam a fronteira irlandesa todos os dias e bens e serviços passam entre as duas jurisdições sem restrições. Como o Reino Unido e a Irlanda fazem atualmente parte do mercado único da UE e da união aduaneira, os produtos não precisam ser inspecionados para fins alfandegários e cumprimento de normas, mas, depois do Brexit, isso pode mudar. / AFP e REUTERS, com Rodrigo Turrer