Kirchnerismo opõe famílias de mortos

Marcha em memória do promotor Alberto Nisman acirra divisão entre parentes de vítimas do atentado contra associação israelita

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Por Rodrigo Cavalheiro , CORRESPONDENTE e BUENOS AIRES
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Entre os 400 mil argentinos que marcharam sob guarda-chuvas na quarta-feira em Buenos Aires, estava Sofía Guterman. Em 21 de julho de 1994, ela faltou a um protesto também sob temporal, três dias depois do atentado investigado pelo promotor Alberto Nisman. Sofía ainda procurava o corpo da filha Andrea nas ruínas da Associação Mutual Israelita-Argentina (Amia) e parentes das 85 vítimas eram um bloco imune à política. As fissuras iniciadas com as decepções na investigação tornaram-se rachaduras em 2013, quando a presidente Cristina Kirchner bancou a assinatura de um acordo com o Irã, segundo o qual altos funcionários iranianos culpados pela Justiça argentina seriam ouvidos em seu país, em uma espécie de Comissão de Verdade. A maior parte das famílias foi contrária.Quando Nisman acusou a presidente de usar esse pacto para fins comerciais - impulsionando uma troca de grãos por petróleo - e foi encontrado morto quatro dias depois, a polarização que atingiu o país terminou de distanciar as famílias com as quais Nisman regularmente se encontrava. Os graus de adesão à marcha em sua homenagem são sinal dessa ruptura."Ele nos dizia que era ameaçado, que estava prestes a conseguir um avanço importante, mas tudo era muito lento. Decidi ir à marcha porque ele morreu tentando achar a verdade que queremos saber", diz Sofía.Sua filha, professora de jardim de infância então com 28 anos, foi à Amia em busca de emprego. O corpo foi identificado sete dias depois, por uma medalha e uma pulseira. "Quando telefonaram do necrotério dizendo que a tinham encontrado, perguntei 'ela está viva?'", lembra Sofía, para quem Andrea, se não estivesse entre as vítimas, teria ido à marcha de quarta-feira. Sofía, entretanto, deixou de frequentar, a cada 18 de julho, os atos oficiais em homenagem às vítimas. "Virou um discurso político de três ou quatro alinhados ao governo", afirma, referindo-se ao grupo de parentes 18J (mais informações nesta página).O mesmo ocorreu comLuis Czyzewski, que perdeu a filha Paola, então com 21 anos. Ele não foi ao ato de 1994 porque estava no enterro. "Estive no 18J até seis anos atrás, quando começaram a tomar partido. Sem estar ligado ao governo, fico mais à vontade para dizer o que está certo. Não faço questão de ser convidado da presidente", diz o auditor, que trabalhava no cemitério da Amia no momento da explosão. Paola visitava a mãe, que trabalhava na Amia. Desceu para buscar um café no momento em que o carro-bomba foi detonado. A mãe saiu ilesa. A marcha por Nisman, convocada por promotores e juízes, foi atacada pelo kirchnerismo, que a considerou um ato opositor. Executivo e Judiciário enfrentam uma crise, com seguidas derrotas judiciais do governo em investigações de corrupção sobre a cúpula da administração. Na marcha de quarta-feira, embora não houvesse faixas ou bandeiras políticas, as demandas iam além do esclarecimento da morte. Por isso, grupos de parentes ligados ao kirchnerismo não compareceram. Outros, como o Apemia, dirigido por Laura Ginsberg, recomendaram a seus integrantes que não fossem por razões mais sutis. "Fizemos uma marcha no dia 4 em que exigíamos coisas concretas. Esse ato do qual se apropriaram alguns promotores não tinha nenhuma reivindicação e ganhou contornos políticos", disse ao Estado Laura, que perdeu o marido José Ginsberg, aos 43 anos, no atentado. Entre as exigências feitas por seu grupo estão o esclarecimento do caso Nisman, do atentado e a abertura dos arquivos do serviço secreto, suspeito de envolvimento na morte do promotor. Segundo ela, as divisões entre os parentes das vítimas ocorrem por razões políticas."Estive no ato de 1994 e era uma causa basicamente judaica. Na marcha de Nisman, havia múltiplas demandas, entre elas o atentado e sua denúncia, mas também o autoritarismo e a mentira. O diagnóstico da doença que temos como sociedade passa por dizer o que pensamos, não achar que é 'problema do outro'", afirma Waldo Wolff, vice-presidente da Delegação de Associações Israelitas-Argentinas. "Essa divisão entre parentes não é casual e as grandes diferenças começaram nesse governo. Uma estratégia para dividir que passou por todos os setores. Pelo nosso também."

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