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Kosovo é caso único, mas abre precedente

Por Timothy Garton Ash
Atualização:

Quando um povo dissolve os laços políticos que o unia a outro, ele o faz jurando solenemente respeitar as condições da União Européia, da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), da Otan, do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia e acatando a proposta do enviado especial da ONU Martti Ahtisaari. No barulho em torno da declaração de independência de Kosovo, poucos pararam para notar como esse documento é extraordinário. Ele é tão limitado por condições, obrigações e reservas, muitas delas relacionadas à proteção das minorias sérvias remanescentes, tão repleto de compromissos de consulta, respeito e obediência aos patrocinadores internacionais da província, que o documento poder ser considerado também uma declaração de dependência. O último parágrafo, por exemplo, começa assim: "portanto, afirmamos claramente, especificamente e irrevogavelmente, que Kosovo estará legalmente obrigado a cumprir as provisões contidas nesta declaração, incluindo as obrigações contidas no Plano de Ahtisaari" (o itálico é meu). Quase dá para ouvir o conselheiro ocidental ditando as frases por cima do ombro do escrivão. A realidade, é claro, será bem diferente das belas palavras no papel. Os albaneses kosovares deram um passo importante rumo à autonomia. Tinham o que comemorar nas ruas de Pristina no domingo passado. Seus livros de ensino, até mesmo aqueles produzidos com subsídios da UE, contarão uma história gloriosa, ainda que mítica, sobre séculos de luta nacional que culminaram nesse dia. Eu não gostaria de ser um sérvio kosovar morando num dos enclaves ao sul do Rio Ibar nos próximos anos. Lamento pelos belos mosteiros sérvios em Decani, Pec e Gracanica, que agora serão, mais do que nunca, ilhas num mar alienígena. A posição dos sérvios ao norte da ponte Mitrovica, sobre o Ibar, é outra história. Apesar do fechamento temporário de sua fronteira com a Sérvia, por parte da Otan, depois que manifestantes locais incendiaram dois postos fronteiriços, a realidade de sua integração diária social, econômica e cultural com a Sérvia continuará. De fato, Kosovo já está dividido. E o quadro continuará assim até que o novo Estado e a Sérvia se tornem, eventualmente, membros da UE e que os kosovares possam almejar - num longo prazo - um status comparável ao da Bélgica: um país unido formalmente e dividido na prática, mas com a paz e a liberdade dos cidadãos garantida por uma estrutura abrangente. Na verdade, se tudo correr bem no sudeste da Europa e mal no nordeste, Bélgica e Kosovo ainda poderão convergir: a balcanização da Bélgica acompanhará a belgicanização dos Bálcãs. É verdade que o contexto da unidade européia diferencia essa história daquelas da maioria dos territórios separatistas do mundo. De fato, a UE está passando do modo de império para o modo de ampliação. Eis o estilo europeu de descolonização no século 21: de protetorado a Estado membro da UE, sem nem sequer adquirir independência total e soberana no meio do caminho. E, pelo menos no papel, os albaneses kosovares aceitaram o preço. Se eles descumprirem o prometido, haverá milhares de funcionários europeus presentes - e com o apoio de tropas da Otan - para reconduzi-los ao caminho da virtude. Essa declaração de independência dependente, internacionalmente coordenada, é o menos pior dos desfechos. Os críticos, que afirmam que a iniciativa traz instabilidade à região, ignoram que o próprio limbo onde Kosovo vivia desde a guerra de 1999, com a Resolução nº 1.244 da ONU, era instável e insustentável. Ninguém em sã consciência investiria dinheiro neste limbo. A paz frágil era pontuada por distúrbios. O desemprego passa de 40%. Nada estável e permanente poderia ser construído sem a solução da questão do status. E, para a vizinha Macedônia, o país mais diretamente afetado em razão de sua minoria albanesa, um Kosovo independente é um fator de estabilização (obviamente, o mesmo não vale para a Bósnia). ÓDIO E LAMENTO Apesar das atrocidades da era Milosevic, a solução não é totalmente justa. No fim, contudo, é o desfecho menos pior também para os sérvios. É horrível perder um braço gangrenado, mas às vezes é a condição para a recuperação. No fundo, muitos sérvios sabem disso. E foi em Belgrado, não em Pristina, que ouvi a piada: os sérvios fariam qualquer coisa por Kosovo, exceto morar lá. No início, haverá uma explosão de ódio e lamento. Assim deve ser. Depois, no entanto, a Sérvia terá de fazer uma escolha: calar-se durante décadas em ressentimento, como a Hungria depois do Tratado de Trianon, ou tomar o caminho europeu da reconstrução nacional, como a Hungria hoje. E a Europa, por seu lado, tem a obrigação sagrada de manter esse caminho aberto. Ainda se passarão muitos anos até que Kosovo ocupe seu assento nas Nações Unidas, entre Kiribati e Kuwait (ou Curdistão - Kurdistan, em inglês - se este chegar lá primeiro). A Rússia, como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, com direito a veto, vai impedi-lo. Muitos kosovares, porém, já foram à Suíça e devem se lembrar que os suíços só se tornaram membros da ONU em 2002. O que importa, em primeiro lugar, é a realidade no terreno e o grau do reconhecimento por parte dos outros Estados (enquanto escrevo, mais de 20 já reconheceram ou anunciaram a intenção de reconhecer Kosovo, incluindo EUA, Grã-Bretanha e Alemanha). Trata-se de um precedente, como alguns temem? É claro que sim. Toda declaração de independência é um precedente. Líderes apoiados pela Rússia na Ossétia do Sul e em Transdniester falam em seguir o exemplo dos kosovares apoiados pelos EUA. Separatistas bascos e catalães tomaram nota e o governo espanhol reagiu contra a declaração de independência com dureza surpreendente - em parte porque ela surgiu no meio de uma disputada campanha eleitoral. Kosovo é o assunto principal no site da Organização das Nações e Povos Não-Representados (UNPO, na sigla em inglês), que tem 69 membros, de Abkházia a Zanzibar. OUTROS KOSOVOS "Kosovo é um caso especial", diz a declaração de independência, insistindo que não se trata de um precedente. Todos os outros 68 membros da UNPO, porém, também são casos especiais. Os liberais têm regras universais para o tratamento de indivíduos, mas sempre se complicam quando o assunto são grupos, principalmente quando o debate é sobre multiculturalismo e quanto devem decidir quem pode exercer o direito da autodeterminação. Eles não têm uma resposta coerente para a pergunta do nacionalista. "Por que devo ser uma minoria em seu país, se você pode ser uma minoria no meu?" A declaração de independência dependente de Kosovo é o menos pior dos caminhos, mas não podemos fingir que não é um precedente. Ambas as afirmações são verdadeiras. Kosovo é único, mas haverá mais Kosovos. * Timothy Garton Ash é professor de estudos europeus na Universidade de Oxford. Ele escreveu este artigo para o jornal The Guardian

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