''Leão do Senado'' apoiou 15 mil leis

Continuamente reeleito desde a morte de JFK, Ted defendia causas liberais e apoiou Obama

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Por Gilles Lapouge
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Sua morte significa a morte da "dinastia" Kennedy, essa poderosa família da Nova Inglaterra (Boston) que, por seu charme, seu gênio, seus infortúnios, sua beleza, frequentou os últimos 50 anos da história americana e do mundo. Morte de Ted Kennedy deixa vazio na política americana Obama: Morte de Kennedy encerra capítulo da história dos EUA Republicanos e democratas lamentam morte de Kennedy Perfil: Câncer põe fim a trajetória do 'último Kennedy' Conheça os membros da Dinastia Kennedy Fotos: Veja as principais imagens de Ted Kennedy Vídeo: Assista no YouTube o histórico discurso na convenção democrata em 2008 Especial: Cronologia da vida do senador democrata Quatro momentos na vida de Ted Kennedy Família de origem irlandesa levada ao poder pelo afluente Joseph Kennedy, que foi embaixador americano em Londres, a "casa Kennedy" acresce a suas seduções um traço que figura no brasão de todos os heróis trágicos: o furor com que o destino se atira contra pessoas talhadas para o sucesso. No caso dos Kennedys, a quem tudo sorria, foi a morte violenta que dizimou o clã - no total, oito integrantes da família. Os pais, Joseph Patrick e Rose Fitzgerald Kennedy tiveram nove filhos. Dos quatro filhos homens, três morreram violentamente. Quanto a Ted Kennedy, que acaba de morrer, ele era o mais jovem e sobreviveu por muito tempo a seus irmãos. E foi de doença que ele acabou seus dias. Os Kennedys exibiam, com frequência, modos estranhos que não condiziam com a elegância e a generosidade do clã. Para o mais célebre, John F. Kennedy, as revelações não cessaram mesmo após sua morte. Naquele "anjo" também se ocultava um "demônio": cumplicidades com a máfia e um priapismo que jamais se aplacava apesar das belas garotas que seus agentes lhe traziam e ele consumia como um bruto vulgar. Entre essas damas, a mais bela mulher do mundo: Marilyn Monroe. Ted Kennedy, no crepúsculo de uma longa vida, revestiu-se com o hábito do patriarca. Sua generosidade era total. Uma vez desaparecidos seus dois irmãos, ele se encarregou do comando do clã, cuidando dos filhos dos irmãos mortos. A tragédia acompanhou a família: . Ted fazia a figura do velho sábio. O senador havia atraído a estima de todos, mesmo de inimigos. No dia em que o câncer de Ted foi anunciado no Senado, em maio de 2008, o decano da Casa, Robert Byrd, de 90 anos, caiu em prantos e o ouviram murmurar: "Eu te amo. Você me fará falta." John McCain - o então candidato republicano, que deveria detestar Ted - balbuciou apenas, entre lágrimas: "Eu descrevi Ted como o último leão do Senado." Um patriarca, portanto, um homem acima de qualquer suspeita. Ele foi o senador que defendeu o maior número de leis no Senado (mais de 15 mil). Tudo isso traça o perfil de um homem que rompeu, enfim, com a tradição penosa que se prendeu à família Kennedy. Mas se é verdade que Ted foi um personagem brilhante, ele também foi rico em imagens venenosas. Como JFK, dois traços acompanham seu destino: o flerte embriagado com a morte violenta e um fraco por mulheres que o conduziu à beira do abismo. Desde sua juventude, alguns traços nos alertavam. Na Universidade Harvard, o jovem Ted ocupava-se tanto com suas festanças noturnas, mulheres, uísque e excesso de velocidade que não conseguia conceder aos cursos toda atenção que lhes devia dar. Nessas condições, compreende-se que ele tenha tido a necessidade de pagar os serviços de outro estudante para passar no exame de espanhol. Essa fraqueza lhe valeu a expulsão da universidade. Nesse momento, Ted, exaltado pelas proezas de seu irmão mais velho, John, na Guerra do Pacífico, tomou uma resolução e engajou-se na Guerra na Coreia por quatro anos. O que aconteceu? A guerra vista de perto era menos sedutora. Seu pai interveio e Ted deixou a Coreia. Chegou o grande momento da família Kennedy: a eleição do mais brilhante deles, o carismático JFK para a Casa Branca. John deixou, então, sua cadeira de senador. Ted tinha apenas 28 anos e teve de esperar os 30 para assumir seu lugar como suplente provisório. Depois disso, foi continuamente reeleito para o Senado, onde sua presença, seu trabalho, a coragem que mostrou estiveram acima de qualquer suspeita. Ele permanecerá como um dos maiores parlamentares americanos. Alguns anos mais tarde, em 6 de junho de 1968, foi a vez de seu irmão Robert ser assassinado. A partir desse momento, Ted era o único sobrevivente dos irmãos Kennedy. Seu talento e sua experiência poderiam lhe abrir todas as portas da presidência. Mas um acidente de carro, no qual a jovem secretária Mary Jo Kopechne morreu, aparentemente sem que ele a tentasse socorrer, o teria levado a desistir da candidatura. Onze anos mais tarde, Ted achou que poderia disputar com Jimmy Carter a nomeação democrata para as eleições presidenciais de 1980. Mas os EUA não haviam esquecido do incidente. Ted foi vencido e o caminho da Casa Branca se fechou para o último dos Kennedys. No dia em que foi revelado seu tumor cerebral, no ano passado, os EUA se comoveram. Eles amavam, apesar de tudo, seu velho Ted e viam, por trás do rosto devastado do "velho leão", o fantasma daquela família, digna das grandes tragédias gregas ou, mais ainda, das altas e tenebrosas figuras régias de Shakespeare, aquela corte a um só tempo bendita e maldita da qual ele era o único e heroico sobrevivente. Os dias seguintes deram uma última lição da "coragem Kennedy". Vitimado por um tumor incurável, ele quis ser operado, apesar de conhecer os riscos: mesmo em caso de sucesso, não poderia esperar mais de um ano de sobrevida. A cirurgia durou três horas e meia. Ele ficou consciente porque esse tipo de operação o exige. Alguns dias mais tarde, viu-se esse espectro voltar ao Senado que discutia uma de suas leis de generosidade social. E depois, para surpresa geral, Ted compareceu à Convenção Democrata que nomeou Barack Obama no ano passado. Os delegados viram esse ressuscitado declarar seu apoio a Obama que tantos americanos comparam, quanto ao carisma e à esperança, a JFK. Em suas últimas palavras, nesse apelo desesperado à esperança, os EUA escutaram o eco da fórmula gritada um dia por outro Kennedy: "A esperança renasce. E o sonho continua." Como se, às portas da morte, o último dos Kennedys passasse o bastão, e quase o destino, dos Kennedys ao jovem Obama.

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