Pesadelo no Mediterrâneo: Lei mais dura na Europa, mais mortos no mar

Desesperados, candidatos ao refúgio lançam-se em rotas cada vez mais arriscadas

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Por Adriana Carranca, Trappani e Itália
5 min de leitura

TRAPPANI, ITÁLIA - Na noite do dia 25, 11 barcos foram lançados ao mar da costa da Líbia com 304 pessoas, rumo à Itália. No menor deles, viajavam oito famílias sírias. O mar parecia calmo e o contrabandista garantiu que em pouco mais de duas horas eles estariam em terra firme. Em alto-mar, porém, o cenário era outro. Os passageiros de um dos botes viram quando uma grande onda virou a pequena embarcação e jogou os 27 sírios ao mar.

O bote estava distante demais, lotado demais, sem comunicação para pedir socorro e sem combustível suficiente para retornar – uma estratégia dos traficantes, para obter mais lucro, é lançar as embarcações ao mar com combustível suficiente apenas para chegar até águas internacionais, onde operam os navios de resgate no Mar Mediterrâneo. Com o filho de 5 anos em um dos braços, Abdel Azis el-Assaf tentou sustentar a mulher com o outro, mas teve de deixá-la por um momento para socorrer a filha. 

Refugiados no Porto de Augusta, Sicília; mais de 86% das mortes no mar este ano ocorreram entre o Norte da África e a costa italiana Foto: ADRIANA CARRANCA / ESTADÃO

Assaf nadou até a menina, mas, ao aproximar-se dela, viu que estava morta. Quando tentou voltar ao ponto onde deixara a mulher, Jihan, já não a encontrou. Provavelmente, afundara – o grupo usava colete salva-vidas, mas os artefatos, entregues pelos traficantes, são falsos, preenchidos apenas com espuma. 

Duas crianças morreram por dia no Mediterrâneo no último ano, desde 1.º de setembro de 2015, quando a foto do corpo do menino sírio Aylan Kurdi, encontrado em uma praia da Turquia, chocou o mundo. A imagem obrigou a União Europeia a responder à tragédia, mas não evitou que outras 4.376 pessoas morressem no mar nestes 12 meses. São 6.600 desde janeiro de 2015; 9.969 desde 2014, quando o grupo jihadista Estado Islâmico (EI) avançou sobre terras sírias e iraquianas e a guerra se intensificou. 

“Tentar manter as pessoas fora (da Europa) não está funcionando. O fechamento das fronteiras e a política para refugiados adotada pela União Europeia reduziram as chegadas, mas o número de mortos continua crescendo. Isso indica que eles estão chegando por meios mais perigosos e por rotas mais letais, como Líbia-Itália”, afirma Andrea Ciocca, coordenador das operações da ONG Médicos Sem Fronteiras em Trappani.

Mais de 86% das mortes no mar este ano ocorreram entre o Norte da África e a costa da Sicília. Entre janeiro e agosto, 2.726 morreram ou desapareceram nesta travessia, de acordo com a Organização Internacional de Migração – quase o total de mortos em todo o ano passado (2.892) na mesma rota. 

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Um em cada 39 dos que tentaram a travessia morreu. A proporção de mortes na rota entre Líbia e Itália, em relação ao número de chegadas, é 11 vezes maior do que na rota via Grécia, mais curta, mas menos usada após o acordo da União Europeia com a Turquia, firmado em março, que prevê a deportação de novos refugiados, requerentes de asilo e migrantes que chegam às ilhas gregas.

Escolha. Assaf e Jihan decidiram arriscar-se na rota desde a Líbia porque a irmã dela, que chegou à Grécia há cinco meses, contou estar encurralada com o marido e os dois filhos no país, vivendo em condições precárias, sem direitos e sob ameaça de serem enviados de volta à Turquia. 

Outras 50 mil pessoas estão na mesma situação – 38% delas crianças –, mantidas em “campos de detenção”, segundo o Alto-Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur). 

A família fugiu de Raqqa, “capital” do Estado Islâmico na Síria. Os pais de Assaf continuam na cidade, prisioneiros na própria casa, sem eletricidade ou água potável. Os pais de Jihan fugiram para a Turquia. 

“Por favor, me diga que ela está viva”, dizia a mãe, por telefone, ao sobrinho Karom Fihan, de 20 anos, único da família que conseguiu cruzar as fronteiras da Europa até a Holanda, onde pediu asilo, após ser preso duas vezes pelo Estado Islâmico – a primeira, por seis dias, por fumar e a segunda, por 20 dias, por não atender a uma convocação do grupo. “São um bando de loucos”

Veja abaixo: Assista trecho do documentário 'Quando Eu Era Você'

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O centro forense onde estavam os cinco corpos resgatados na noite do naufrágio, dois deles de crianças, fica em um prédio com vista para o Mar Mediterrâneo. Os corpos foram identificados como sendo de um egípcio que conduzia a embarcação, mas seu nome não foi revelado; de Hadida Mataibe al-Faris, de 26 anos, que viajava com o marido; e das meninas Dania e Alaa, de 1 e 2 anos, e sua mãe, Raja Saleh, de 36 anos. O marido de Raja e pai das crianças, Yasir Ahmad Ramadan, de 40 anos, foi o único sobrevivente da família.

Culpa. O Estado conversou com Assaf e Yasir dentro do centro para refugiados de Trappani, uma antiga prisão de muros altos vigiada pelo Exército italiano, um dos chamados “hot spots” para onde são levados os resgatados do mar. 

Confusos e chorando, Assaf e Yasser estavam impedidos de deixar o local. Assaf ainda acreditava que a mulher podia estar viva. Ele contou que o traficante que organizou a travessia assegurava que o pequeno barco de madeira, mais leve que os grandes botes levando centenas de pessoas, era mais seguro. Pelo serviço “vip” cobrou US$ 1.700 por adulto e US$ 1.000 para as crianças. 

Dias depois, Assaf foi transferido com o filho para um abrigo em Roma, onde estão outros 300 refugiados. “Todo o sistema de recebimento é de controle e não de assistência”, diz a ativista marroquina Nawal Soufi. “Eles chegam, são registrados e depois transferidos para os centros onde têm moradia, mas passam a viver por conta própria.” 

Sozinho com o filho de 5 anos, sem documentos ou dinheiro, perdidos no naufrágio, e sem falar italiano ou inglês, Assaf tem medo de deixar o centro. Passa os dias revendo a tragédia no mar e remoendo a culpa por não ter podido salvar a mulher e a filha.

 
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