Leia um trecho do livro ‘Só eu posso consertar isso: o catastrófico ano final de Donald J. Trump’

Jornalistas do 'The Washington Post' entrevistaram mais de 140 pessoas, incluindo experientes funcionários do governo Trump, amigos e conselheiros externos do presidente

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Por Carol D. Leonnig e Philip Rucker
Atualização:

Finalmente o dia da eleição tinha chegado. Na manhã do dia 3 de novembro de 2020, o presidente Trump estava otimista. O clima na Ala Oeste era bom. Alguns assessores conversavam vertiginosamente a respeito de uma vitória esmagadora. Várias mulheres que trabalhavam na Casa Branca chegaram vestindo suéteres vermelhos em um sinal de otimismo, enquanto alguns agentes do Serviço Secreto que faziam a segurança do presidente usavam gravatas vermelhas para a ocasião. A voz de Trump estava rouca devido à corrida desenfreada de comícios, mas ele achava que seu exaustivo sprint final tinha valido a pena. Ele considerava Joe Biden muitas coisas, mas vencedor com certeza não era uma delas. “Não posso perder para esse cara de m…”, disse Trump aos assessores.

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Perto do meio-dia, ele foi escoltado enquanto cruzava o rio Potomac para visitar o principal comitê de sua campanha, em Arlington, onde o chefe de campanha Bill Stepien e outros profissionais experientes, na sala de reuniões, informaram Trump sobre o que viria a seguir. Stepien fez um resumo do que esperar naquela noite - quando as urnas eram fechadas em cada Estado indefinido, com que rapidez os votos deveriam ser contados e quais Estados provavelmente teriam as primeiras projeções de vencedores. Ele explicou que, devido ao grande número de cédulas enviadas pelo correio em muitos Estados, talvez a contagem de votos entrasse pela noite. Era preciso ter paciência.

Stepien explicou a Trump que em muitos Estados indecisos esperava-se que os primeiros votos a serem contados fossem os dados pessoalmente no dia da eleição, que tendiam ser para Trump; enquanto aqueles enviados por correio, que provavelmente favoreceriam fortemente Biden, seriam adicionados à contagem depois, à medida que as cédulas fossem processadas. Isso significava que os totais de votos iniciais poderiam muito bem mostrar Trump à frente com grande vantagem.

“Vai ser bom no início”, disse Stepien ao chefe. Mas, mesmo ele advertindo o presidente de que aqueles números estariam incompletos e que a vantagem provavelmente diminuiria mais tarde, Trump saiu da sala de reuniões e foi para o andar onde as pessoas estavam trabalhando para fazer um breve discurso de encorajamento para as dezenas de funcionários reunidos, que o saudaram com fortes aplausos. Um grupo de jornalistas estava por perto para cobrir seus comentários. Um dos repórteres perguntou se ele havia preparado um discurso de aceitação ou um discurso de derrota para aquela noite.

“Não, não estou pensando nem em discurso de derrota, nem em discurso de aceitação ainda”, respondeu Trump. “Com sorte, vamos fazer apenas um desses dois. E, você sabe, vencer é fácil. Perder nunca é fácil. Não para mim.”

Pessoas assistem a comício de Trump em Washington no dia 6 de janeiro; horas depois, apoiadores do presidente invadiriam o Capitólio Foto: John Minchillo/AP

Enquanto Trump pensava em ganhar ou perder, os oficiais do alto escalão do Pentágono estavam focados em manter a paz. Naquela manhã, o secretário de Defesa, Mark T. Esper; o chefe da Junta dos Chefes das Forças Armadas, general Mark Milley; e outros oficiais de Defesa foram informados a respeito das preocupações com a segurança por todo o país. Se Trump ganhasse, as autoridades esperavam que grandes multidões de manifestantes se reunissem em Washington, talvez algo como 10 mil ou 15 mil pessoas. Policiais estavam monitorando cidades, entre elas Atlanta, Boston, Los Angeles, Norfolk, Filadélfia e San Diego, de olho em prováveis protestos.

Enquanto isso, os cozinheiros e demais funcionários da Casa Branca estavam ocupados, preparando-se para receber centenas de convidados para a festa da noite da eleição. O plano original de Trump era realizar a festa da “vitória” no Hotel Trump International, a poucos quarteirões dali, na Avenida Pensilvânia. Mas esse plano havia sido cancelado alguns dias antes, já que o desejo de uma festa no luxuoso hotel do presidente não estava de acordo com as normas de saúde pública do distrito contra o novo coronavírus. Não era permitido reunir mais do que 50 pessoas em um ambiente fechado na cidade.

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Os funcionários da campanha de Trump e sua equipe política na Casa Branca tinham aproximadamente 400 pessoas que gostariam de convidar para a noite da eleição, então eles transferiram a festa para a Casa Branca, que é propriedade federal e, portanto, não está sujeita aos decretos locais. A escolha do local rompeu a tradição solene de nunca usar a Casa Branca para fins explicitamente políticos, uma regra que Trump já tinha deixado de lado em agosto, quando fez seu discurso de aceitação da Convenção Nacional Republicana no Gramado Sul.

Trump também usou a Casa Branca para abrigar sua operação política, estabelecendo duas “salas de guerra” com computadores, televisores de tela grande e outros equipamentos onde funcionários da campanha monitorariam os resultados das eleições. A maior das duas salas de guerra ficava num escritório do governo conhecido como Eisenhower Executive Office Building, que fica ao lado da Ala Oeste e parte do campus da Casa Branca, onde aproximadamente 60 funcionários teriam estações de trabalho de onde receberiam as informações mais recentes dos Estados indecisos e acompanhariam os dados dos distritos eleitorais.

A sala menor ficava na Sala de Mapas, no térreo da residência da Casa Branca. Repleta de história, a Sala de Mapas recebeu esse nome na Segunda Guerra Mundial, quando o presidente Franklin D. Roosevelt a transformou em uma sala de estratégia com mapas para acompanhar as movimentações das tropas e receber informações confidenciais sobre o andamento da guerra. Os assessores mais experientes de Trump planejavam trabalhar durante a noite na Sala de Mapas, agora transformada no centro de comando da campanha, onde Stepien e seus principais assistentes poderiam analisar os dados e permanecer próximo ao presidente para informá-lo pessoalmente, se necessário.

Este e outros episódios relatados neste livro são baseados em centenas de horas de entrevistas com mais de 140 pessoas, incluindo os mais experientes funcionários do governo Trump, amigos e conselheiros externos do 45º presidente. A maioria das pessoas entrevistadas concordaram em falar abertamente apenas sob a condição de anonimato. As cenas foram reconstruídas com base em relatos em primeira mão e, sempre que possível, corroboradas por múltiplas fontes e apoiadas por uma revisão de agendas, entradas de diários, memorandos internos e outras correspondências entre os responsáveis.

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A presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi esteve trabalhando para essa noite durante quatro anos. Para ela, a noite da eleição de 2016 tinha sido um pesadelo e ela estava determinada a não permitir uma repetição em 2020. “Aquela noite foi como levar coices de uma mula nas costas repetidamente”, disse ela em uma entrevista. A representante democrata da Califórnia lembrou do que pensou naquela noite a respeito da vitória inesperada de Trump: “Isso não pode ser verdade. Isso não pode estar acontecendo ao nosso país.”

Nancy acrescentou: “Você entende que esta não é uma pessoa de juízo perfeito. Você entende isso. Você sabe disso. Ele não tem o juízo perfeito... Assim que ele foi eleito, fiquei arrasada, porque eu achava que Hillary Clinton era a pessoa mais preparada para ser presidente - mais do que o marido dela, mais do que Obama, mais do que George W. Bush. Talvez não mais que George Herbert Walker Bush, porque ele tinha sido vice-presidente. Não acho que nenhuma dessas pessoas que acabei de mencionar negaria que ela era mais qualificada, experiente e tudo mais. Então, a ideia de que ele seria eleito era chocante. Foi chocante”.

Mitt Romney tinha ficado menos chocado com a eleição de Trump - ele assistiu em primeira mão como o partido Republicano foi radicalizado pela extrema direita -, mas estava igualmente determinado a evitar um segundo mandato para Trump. O senador pelo Estado de Utah disse em uma entrevista que ele tinha assistido aos resultados das eleições na Califórnia com a esposa, Ann, o filho Craig e outros familiares, e que sentiu o estômago embrulhar. Os primeiros números pareciam surpreendentemente bons para Trump. Biden estava tendo dificuldades no termômetro quadrienal da Flórida, até mesmo no condado de Miami-Dade, rico em democratas.

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“Acho que ele vai ganhar”, Romney lembra de dizer à família. “Aquelas pesquisas estavam erradas. Acho que ele vai ganhar, infelizmente."

Na Casa Branca, as pessoas gostaram do que estavam vendo. Havia uma atmosfera de festa. A equipe confraternizou nos escritórios da Ala Oeste pelo menos até 21h. Funcionários do Conselho de Segurança Nacional celebraram na Sala Roosevelt. O chefe de Gabinete da Casa Branca, Mark Meadows, serviu cerveja e comida em seu escritório. Outro grupo de assessores permaneceu do lado de fora do escritório da secretária de imprensa da Casa Branca, Kayleigh McEnany, conhecido como Upper Press. Na residência, dezenas de convidados - secretários de gabinete, representantes do Congresso, estrelas da televisão e outras personalidades - bebiam e se divertiam por ali, a maioria sem máscara, exceto pelo secretário de Saúde e Serviços Humanos, Alex Azar, que manteve a sua. Depois de muitos goles de vinho e cerveja, alguns convidados ficaram bastante animados com o passar da noite.

No andar de cima, nos aposentos privados da família do presidente, Trump ficou grudado na televisão. Ele alternava entre assistir sozinho em seu quarto e em outro cômodo com Melania, outros familiares e alguns de seus assessores de maior confiança, incluindo Hope Hicks. Os assessores mais experientes, entre eles Stepien, Meadows, McEnany, Jason Miller, Stephen Miller e Ronna McDaniel estavam na Sala de Mapas. Os familiares de Trump - Donald Trump Jr., Ivanka Trump, Jared Kushner, Eric Trump e a esposa, Lara, que trabalharam na campanha - entravam e saíam durante a noite, assim como alguns convidados especiais da festa, como as estrelas da Fox News Laura Ingraham e Jeanine Pirro.

Todos recorriam a Matt Oczkowski para atualizações, às vezes, frequentemente a cada poucos minutos. Como principal analista de dados da campanha, Oczkowski sentou na frente do computador e realizou análises em tempo real dos dados recebidos para se manter à frente das situações nos Estados e detectar qualquer problema no horizonte. Ele gostou do que viu mais cedo. A Flórida oferecia os primeiros bons indicadores. Trump estava tendo um melhor desempenho entre negros e latinos, principalmente entre os americanos cubanos no sul da Flórida. O condado de Miami-Dade estava a todo vapor a favor de Trump. E os números entre a base branca e rural do presidente estavam altos. Meadows, enquanto isso, prestava muita atenção aos resultados da Carolina do Norte, que ele tinha representado no Congresso, e se sentia confiante quanto às chances de Trump por lá. E os primeiros números da Pensilvânia eram encorajadores.

A essa altura da noite, Stepien tentou atenuar o otimismo de Trump e evitar que a mente do presidente se distanciasse muito da realidade. “Fique calmo”, disse o chefe de campanha. “Ainda vai levar um tempo até termos o resultado final.”

Uma pessoa de confiança de Trump que ficou boa parte do tempo fora da Sala de Mapas foi Rudolph W. Giuliani. Isso porque o advogado pessoal do presidente tinha montado seu próprio centro de comando no andar acima daquele onde ocorria a festa. Giuliani estava usando uma mesa na Sala Vermelha com o filho, Andrew, que trabalhava na Casa Branca no Office of Public Liaison, olhando o tempo todo para um laptop e assistindo a contagem dos votos. Os Giulianis produziram uma cena estranha enquanto aqueles que aproveitavam a festa circulavam entre eles.

Depois de um tempo, Rudy Giuliani começou a causar uma comoção. Ele estava dizendo aos outros convidados que havia bolado uma estratégia para Trump e estava tentando entrar nos aposentos privados para contá-la a ele. Algumas pessoas pensaram que Giuliani talvez tivesse bebido demais e sugeriram a Stepien que fosse conversar com o ex-prefeito de Nova York. Stepien, Meadows e Jason Miller levaram Giuliani para um cômodo abaixo da Sala de Mapas para escutá-lo.

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Giuliani mencionou Estado por Estado e perguntou a Stepien, Meadows e Miller o que eles estavam vendo e qual era o plano deles.

“O que está acontecendo em Michigan?”, perguntou Giuliani.

Eles disseram que era muito cedo para dizer, os votos ainda estavam sendo contados e eles não sabiam a resposta.

“Apenas digam que ganhamos”, falou para eles.

A mesma coisa na Pensilvânia. “Apenas digam que ganhamos na Pensilvânia”, falou Giuliani.

O grande plano de Giuliani era apenas dizer que Trump havia ganhado, Estado após Estado, baseado em nada. Stepien, Miller e Meadows acharam o argumento dele tanto incoerente como irresponsável.

“Não podemos fazer isso”, disse Meadows, elevando o tom da voz. “Não podemos.”

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Algumas disputas importantes estavam acontecendo para os republicanos. Na Carolina do Sul, o senador Lindsey O. Graham enfrentou um desafio e tanto com o democrata Jaime Harrison, um candidato impressionante que tinha atraído atenção nacional e arrecadado a quantia recorde de US$ 109 milhões. Mas a Carolina do Sul, há muito um bastião do republicanismo, permaneceu dentro do esperado. A disputa foi encerrada cedo, com Graham ganhando com 54% dos votos, enquanto Harison obteve 44%.

Trump estava assistindo à TV enquanto os noticiários projetavam a vitória de Graham e, em questão de minutos, ligou para o amigo.

“Você conseguiu sua vitória”, disse Trump para Graham. “Ainda estou na disputa pela minha.”

“Bem, senhor presidente, aguente firme aí”, disse Graham. “A situação parece muito boa para o senhor.”

À medida que a noite avançava, alguns dos assessores de Trump começaram a se preocupar. As pesquisas públicas, assim como as internas da campanha de Trump, tinham projetado há muito que a disputa com Biden seria perdida, e essa previsão estava sendo confirmada conforme mais votos eram contados nos Estados indecisos. Alyssa Farah, diretora de Comunicação Estratégica da Casa Branca, saiu da festa no Salão Leste e viu Ronna andando de um lado para o outro no corredor.

“Ronna, que bom ver você!”, Alyssa disse para a presidente do Comitê Nacional Republicano.

“Oi, que bom lhe encontrar”, respondeu Ronna. Então, enquanto ela se virava, Ronna disse: “As coisas não parecem nada boas”.

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William P. Barr tinha o mesmo sentimento. O procurador-geral dos Estados Unidos compareceu à festa da noite da eleição de Trump, mesmo pensando há meses que Trump estava destinado a se tornar um presidente de um único mandato. Trump não parecia capaz de domar seu comportamento e transmitir uma mensagem disciplinada. Barr ficou pela festa por um tempo, mas pouco depois das 22h decidiu ir embora. E foi para casa descansar.

Os dois principais líderes do Pentágono mantiveram distância da festa de Trump, ainda hipervigilantes sobre evitar qualquer sugestão de que estavam politizando as Forças Armadas. Esper e Milley tinham aprendido essa lição lá em 1º de junho, na praça Lafayette. Milley assistiu aos resultados na TV de sua casa no Fort Myer, em Arlington. Fã de história, Milley imortalizou a noite ao fazer suas próprias anotações a respeito dos resultados dos Estados em seu diário. Por volta das 22h30, com a maioria dos resultados dos Estados-chave ainda distantes de serem anunciados, Milley recebeu uma ligação interessante de um amigo militar aposentado que o lembrou de seu papel apolítico como chefe da Junta dos Chefes das Forças Armadas.

“Você é uma ilha em si mesmo neste momento”, disse o amigo, de acordo com o relato de Milley compartilhado com assessores. “Você não está conectado a nada. Sua lealdade é à Constituição. Você representa a estabilidade desta república.”

O amigo de Milley acrescentou: “Há pessoas de baixa categoria no Pentágono. E você tem pessoas de quinta categoria na Casa Branca. Você está cercado por total incompetência. Aguente firme aí. Mantenha-se firme”

Esper estava em casa, na Virgínia do Norte, sentindo-se em paz por ter sobrevivido tanto tempo sem ser demitido e sem ter concordado com os desejos de Trump de usar as tropas para lidar com as manifestações no país. O secretário de Defesa teve um alvo em suas costas durante todo o outono, mas Trump não o tinha demitido.

Na noite anterior, em 2 de novembro, Esper levou um susto quando a repórter da NBC, Courtney Kube, planejou relatar que ele estava se preparando para ser demitido no dia seguinte à eleição; que tinha atualizado sua carta de demissão e estava calmamente aconselhando os integrantes do Congresso sobre a renomeação das bases do Exército com nomes de generais confederados como uma espécie de último ato para fortalecer seu legado. Esper acreditava que se a NBC levasse ao ar a matéria, isso seria um sinal de que ele estava prestes a pedir demissão e provocaria sua demissão prematura - então correu para impedir isso.

Ele orientou seus assessores a tentarem convencer Courtney de que as informações dela poderiam ser exageradas. Era verdade que Esper tinha conversado com os comitês do Congresso sobre a renomeação das bases. Também era verdade que ele tinha preparado uma carta de demissão, assim como muitos nomeados por Trump tinham, mas não estava em seus planos iminentes entregá-la.

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Na verdade, Esper estava na expectativa de que Trump o demitisse após a eleição, mas ele estava esperando continuar, se pudesse, pelo menos por alguns dias depois da eleição. Ele estava preocupado com o que Trump talvez tentasse fazer com as Forças Armadas se ele não estivesse no comando. Esper alertou Courtney que levar sua matéria ao ar poderia resultar em uma secretaria de Defesa atuante mais submissa, o que poderia ter repercussões preocupantes. A matéria foi segurada já que eles não entravam em um acordo.

Esper era um republicano de longa data e tinha trabalhado na conservadora Fundação Heritage, assim como para os senadores republicanos Bill Frist e Chuck Hagel. Mas ele disse aos colegas mais próximos que, enquanto assistia a cobertura das eleições no noticiário, percebeu-se torcendo pelo democrata. Esper tinha trabalhado com Biden e seu futuro secretário de Estado, Antony Blinken, quando foi membro sênior do Comitê de Relações Exteriores do Senado.

Ele tinha confiança de que eles eram pessoas sérias e estáveis, que se importavam profundamente em apoiar a segurança nacional. Esper não podia dizer o mesmo em relação a Trump. Na verdade, Trump havia sugerido, em particular, que tinha como objetivo se retirar da OTAN e acabar com a aliança dos EUA com a Coreia do Sul, caso fosse reeleito. Quando o tema das alianças surgiu nas reuniões com Esper e outros representantes importantes, alguns assessores alertaram Trump que destruí-las antes da eleição seria politicamente perigoso.

“Sim, no segundo mandato”, disse Trump. “Faremos isso no segundo mandato.”

Esper sabia que Trump queria demiti-lo desde a discussão de 3 de junho sobre a invocação do "Insurrection Act" para conter as manifestações, mas havia ouvido falar que o secretário de Estado Mike Pompeo, funcionários da campanha e outros assessores tinham conversado com o presidente para convencê-lo a não fazer isso antes da eleição. Eles argumentaram que Trump não podia se dar ao luxo de romper relações com um segundo secretário de Defesa; não depois da partida conturbada de Jim Mattis e as afiadas críticas públicas que ele mais tarde disparou em direção ao presidente.

Esper tinha sobrevivido à tensão da recontagem dos votos na eleição de 2000 com Bush versus Gore. Ele disse repetidamente aos seus oficiais que queria que essa eleição fosse “limpa e clara”, como em livre de qualquer sugestão de corrupção e sem dúvidas de quem tinha ganhado. Ele temia que qualquer coisa diferente disso talvez desse a Trump algum motivo para acionar as tropas. Mais tarde naquela noite, à medida que os números se mostravam favoráveis a Biden, Esper disse a um amigo: “Isso parece bom”. O secretário de Defesa foi para a cama confortado pelos sinais de que o país teria um governo dividido e estável - um presidente democrata e, ele esperava, um Senado republicano.

Às 23h20, na Fox News, Bill Hemmer estava tenso diante de sua tela touchscreen gigante no estúdio F da rede de TV em Nova York, guiando os telespectadores pelos cenários do colégio eleitoral quando o Arizona ficou azul em seu mapa. A mudança repentina de cor pegou Hemmer de surpresa. “O que está acontecendo aqui? Por que o Arizona está azul? Estamos anunciando o vencedor? Acabamos de anunciar o vencedor no Arizona? Vamos ver”, disse ele.

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A outra âncora, Martha MacCallum disse que realmente a Fox tinha anunciado o vencedor no Arizona, um Estado indeciso e fortemente disputado com 11 votos no colégio eleitoral.

Um terceiro âncora, Bret Baier, entrou na conversa. “Vamos lá”, disse ele. “Esse é um grande avanço. Os especialistas da Fox News estão apontando para a vitória de Joe Biden no Arizona.” Baier acrescentou, “Biden ganhando no Arizona altera os cálculos anteriores.”

Trump, que estava assistindo à Fox News, ficou furioso. Ele não podia compreender que a rede de TV conservadora que ele há muito tempo considerava uma extensão de sua campanha fosse a primeira emissora a declarar a vitória de Biden no Arizona. Aquilo era uma traição. Seus principais assessores, que estavam na Sala de Mapas naquele momento, correram para o andar de cima para ver o presidente. Giuliani os seguiu.

“Eles estão anunciando cedo demais”, disse Oczkowski a Trump. “Essa disputa está apertada. Ainda achamos que vamos ganhar por pouco - e não somos só nós. O modelo da equipe de Doug Ducey mostra que estamos vencendo.” Ducey, governador republicano do Arizona, e sua equipe política permaneciam em contato próximo com os assessores de Trump.

Isso quase não havia tranquilizado o presidente. “Que ***** a Fox está fazendo?”, gritou Trump. Então ele ordenou furiosamente a Kushner: “Ligue para Rupert! Ligue para James e Lachlan!”; e para Jason Miller: “Fale com Sammon. Fale com Hemmer. Eles têm que reverter isso”. O presidente estava se referindo aos proprietários da Fox Rupert Murdoch e seus filhos, James e Lachlan, assim como Bill Sammon, importante editor e executivo da Fox.

A fúria de Trump não parou por ali. “Que ***** é essa?”, berrou. “Que ***** esses caras estão fazendo? Como podem anunciar isso tão cedo?”

Oczkowski tentou mais uma vez acalmar o presidente. “Eles estão anunciando isso cedo demais”, disse. “Isso é inacreditável.”

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Giuliani disse para o presidente esquecer do anúncio do Arizona e apenas declarar que tinha ganhado - entrar no Salão Leste e fazer um discurso de vitória. Não importava que Meadows tivesse criticado o plano de Giuliani e dito que o presidente não podia simplesmente declarar a si mesmo como vencedor.

“Apenas declare vitória agora mesmo”, Giuliani disse para Trump. “Você tem que declarar vitória agora."

A insistência de Giuliani com sua estratégia de “apenas diga que você ganhou” deixou os assessores de Trump furiosos.

“É difícil ser o adulto responsável quando há um tiozão legal por perto levando a criança para o cinema em seu conversível”, lembrou um daqueles assessores. “Quando dizemos que o presidente não pode fazer isso, ser responsável não é a coisa mais fácil a se fazer quando você tem pessoas dizendo ao presidente o que ele quer escutar. É difícil dizer não ao presidente. Não é uma situação na qual se quer estar.”

Assim que eles se distanciaram do presidente, Kushner ligou para Rupert Murdoch. Jason Miller tentou Sammon, mas não conseguiu entrar em contato com ele. Outros assessores de Trump também entraram em ação. A conselheira Kellyanne Conway entrou em contato com Baier e MacCallum, que estavam no ar. Hope, que tinha trabalhado com Lachlan Murdoch na Fox Corp entre seus períodos na Casa Branca, falou com o vice-presidente sênior da Fox Corp, Raj Shah, ex-porta-voz de Trump, para conseguir o número de Jay Wallace, presidente da Fox News.

Kellyanne conversou com Brian Seitchik, conselheiro de longa data de Trump que vivia no Arizona. Ele assegurou a ela: “Isso é uma irresponsabilidade. Aqui no Arizona nós ainda temos muitos votos para contar”.

Ducey ligou para a equipe de Trump e foi colocado no viva-voz. O governador disse a eles que o anúncio da Fox era prematuro e que, de acordo com sua análise, Trump ainda tinha chance de vencer porque ainda restavam muitos votos para serem contados.

Normalmente, a maioria dos veículos de comunicação anuncia os resultados dos Estados ao mesmo tempo porque tendem a ter padrões semelhantes para quando é seguro projetar vencedores e perdedores. Mas, no caso do Arizona, outros meios de comunicação importantes evitaram apoiar o anúncio da Fox. Na verdade, Jason Miller recebeu mensagens de texto de seus contatos em outras emissoras. “Não acredito que a Fox esteja jogando sujo com vocês”, escreveu um deles.

Trump e seus familiares ficaram furiosos à medida que a noite avançava e a liderança inicial dele sobre Biden na Pensilvânia e em outros Estados continuava diminuindo. Conforme os votos adicionais eram contados, Biden se aproximava de Trump. A disputa na Pensilvânia estava apertada demais para que um vencedor fosse declarado, assim como a Geórgia. Trump decidiu se pronunciar para os convidados de sua festa e foi para a Sala de Mapas, onde gritou com Justin Clark, chefe de campanha adjunto.

“Por que eles ainda estão contando os votos?”, questionou Trump. “A votação acabou. Eles vão continuar contando as cédulas que chegaram depois? O que diabos está acontecendo?” Trump, por meio de um porta-voz, negou ter dito isso.

O presidente disse a Kellyanne que achava que alguma coisa nefasta estava acontecendo.

“Eles estão roubando isso de nós”, disse Trump. “Tínhamos ganhado essa coisa. Ganhei com uma vantagem esmagadora e eles estão voltando atrás.”

Claro que ninguém estava roubando nada. Os funcionários eleitorais estavam simplesmente fazendo o trabalho deles, contando as cédulas. Mas Trump não via isso dessa maneira. Ele parecia acreditar verdadeiramente que tinha ganhado. Como um assessor de Trump explicou depois, “O impacto psicológico de ‘ele vai ganhar’, as pessoas ligando para ele, dizendo que ele ia ganhar, e, depois, de alguma forma esses votos continuando a aparecer.”

Eric Trump, que na noite anterior tinha previsto para amigos que o pai iria ganhar com 322 votos no colégio eleitoral, perdeu o controle na Sala de Mapas.

“A eleição está sendo roubada”, disse o filho de 36 anos do presidente. “De onde estão vindo esses votos? Como isso é legítimo?”

Ele gritou com os analistas da campanha, como se fosse culpa deles que a liderança inicial de seu pai estivesse diminuindo. “Pagamos vocês para fazer isso”, disse ele. “Como isso pode estar acontecendo?”

Eric Trump, por meio de um porta-voz, insistiu que não repreendeu os funcionários da campanha, como foi descrito por testemunhas.

Donald Trump Jr. disse: “De modo algum vamos perder para esse cara”, referindo-se a Biden.

Pouco depois das 2h da manhã de 4 de novembro, a canção Hail to the Chief foi tocada na festa no Salão Leste. Então, Trump apareceu, seguido por Melania, o vice-presidente Mike Pence e Karen Pence. Stephen Miller e a equipe responsável pela redação dos discursos tinham preparado comentários para Trump fazer, mas o presidente saiu do roteiro e em vez de ler o teleprompter, preferiu falar livremente.

“Nós estávamos ganhando em todos os lugares e, do nada, tudo foi cancelado”, disse Trump. E também disse: “Literalmente, estávamos todos preparados para sair e comemorar algo que era tão bonito, tão bom”.

Trump recitou de memória os Estados onde tinha vencido - Flórida! Ohio! Texas! - e, depois, alegou que já tinha vencido em Estados onde a disputa estava tão apertada que era difícil anunciar um vencedor, inclusive na Geórgia e na Carolina do Norte. Ele se gabou da liderança em alguns Estados - “Pensem nisso: estamos liderando com 690 mil votos na Pensilvânia. Seiscentos e noventa mil!” - e alegou falsamente estar ganhando em Michigan e em Wisconsin.

Nem Trump ou Biden havia sido declarado como o grande vencedor porque a disputa estava apertada demais para dizer quem havia ganhado no Arizona, na Geórgia, na Carolina do Norte e na Pensilvânia. Mesmo assim, Trump insistia que ele era o verdadeiro vencedor e que sua doce vitória tinha sido de alguma forma arrancada dele.

“Isso é uma trapaça com o povo americano”, disse o presidente. “Isso é uma vergonha para nosso país. Estávamos prontos para ganhar essa eleição. Francamente, nós ganhamos essa eleição. Nós ganhamos mesmo essa eleição. Portanto, nosso objetivo agora é assegurar a integridade para o bem desta nação. Este é um momento importante. Essa é a maior fraude da nossa nação. Queremos que a lei seja usada de maneira adequada. Então vamos para a Suprema Corte dos Estados Unidos. Queremos que a contagem dos votos pare. Não queremos que encontrem quaisquer cédulas às 4 da manhã e elas sejam adicionadas ao total, certo? Este é um momento triste. Para mim, este é um momento muito triste, mas vamos ganhar isso. Até onde eu sei, nós já ganhamos.”

Essa era uma acusação extraordinária para qualquer candidato político fazer a respeito de qualquer eleição, ainda mais para um presidente em exercício fazer sobre a eleição mais importante do país. Trump estava dizendo a 74 milhões de pessoas que votaram nele para não acreditarem nos resultados.

Assistindo a tudo na Califórnia, Romney estava arrasado. “Estamos em uma batalha global pela sobrevivência da democracia liberal diante da autocracia e das tentativas dos regimes autocráticos de dominar o mundo”, ele lembrou em sua entrevista. “Portanto, falar algo ou fazer coisas que sugerissem que, na nação livre dos Estados Unidos e no modelo de democracia para o mundo, não podemos ter uma eleição livre e justa teria um efeito destrutivo na democracia ao redor do mundo, sem falar aqui.”

Nancy assistiu ao discurso de Trump horrorizada. “Foi apenas uma completa, total manifestação de insanidade”, lembrou ao ser entrevistada.

“Ficou claro durante aquele período de quatro anos que essa não era uma pessoa confiável - intelectual, mental, emocional e, sem dúvidas, patrioticamente”, disse. “Então, ele dizer o que disse, não diria que foi surpreendente, como poderia ter sido se não tivéssemos visto essa instabilidade o tempo todo.”

Depois de seu discurso, Trump passou um tempo na Sala Verde, ao lado do Salão Leste, conversando com alguns assessores e convidados VIPs, perguntando a eles o que pensavam. Laura Ingraham, cujo programa no horário nobre não seria exibido naquela noite devido à cobertura das eleições da Fox, foi ouvida dando alguns conselhos ao presidente. Ela expressou a dúvida geral de que o resultado mudaria nos próximos dias, dada a relutância histórica dos tribunais federais de intervir nas eleições, um contraste com os cenários que considerava nada realistas sendo descritos por outras pessoas ao redor do presidente.

“Desista do Arizona”, Laura disse a ele, aparentemente confiante na decisão da emissora onde trabalhava de projetar a vitória de Biden no Estado.

Desistir não estava no repertório de Trump. “A Fox não devia ter anunciado isso”, ele disse a ela.

Karl Rove, que foi estrategista de George W. Bush e era comentarista da Fox, tinha acabado de sair do ar quando recebeu um telefonema de um assessor de Trump. “Ele está entrando em colapso”, o assessor disse a Rove. “Você pode ligar para ele e dizer que nem tudo está perdido?”

Rove ligou para o presidente e tentou animá-lo com uma conversa encorajadora.

“Aguente firme aí”, ele disse para Trump. “Há muitas cédulas para serem contadas e isso ainda vai levar um certo tempo para terminar. Você fez uma boa luta... Isso ainda não acabou.”

Rove e Trump discutiram brevemente a respeito da disputa no Arizona. “Conheço anúncios prematuros”, disse ele, lembrando ao presidente do fiasco da noite da eleição de 2000, quando algumas emissoras projetaram que Al Gore venceria na Flórida e depois tiveram que retirar o anúncio apenas algumas horas depois. “Aguente firme aí. Você fez o seu melhor e já chegou até aqui. Você os contrariou em 2016, pode fazer isso outra vez. Apenas aguente aí.”

Trump então retirou-se para da Sala de Mapas para conversar com sua equipe de campanha. Ele permaneceu acordado até as 4 da manhã, refletindo sobre os resultados que chegavam. O presidente estava obcecado com a Pensilvânia, onde Biden continuava diminuindo a vantagem de Trump. Ainda havia votos suficientes para serem contados na Filadélfia, o que era, com certeza, algo positivo para os democratas, para Biden ultrapassar Trump. E, de fato, os democratas estavam otimistas que, uma vez que todos os votos fossem contados ali, Biden ganharia no Estado.

Tanto Kellyanne como Meadows pediram que Trump tivesse paciência.

“Presidente, o senhor está na frente na Pensilvânia por 700 mil votos”, disse Kellyanne a Trump. “Ganhamos por 44 mil votos na Pensilvânia da última vez. Apenas deixe-os contar os votos. Deixe eles terminarem de contar os votos.”

Meadows disse: “Apenas contar os votos, senhor presidente. O senhor provavelmente tem o suficiente para manter aquelas lideranças”.

Trump recusava completamente a ideia. Ele achava que os democratas estavam manipulando os totais de votos.

“Se eu acordar de manhã e disserem que Trump está na frente por 100 mil votos, encontrarão outros 100.001 no quintal”, disse o presidente.

“Senhor presidente, isso dói”, disse Kellyanne. “Dói ter perdido na Pensilvânia.”

“Querida, não perdemos na Pensilvânia”, respondeu Trump. “Ganhamos na Pensilvânia.”

Kellyanne, que com frequência era rápida com uma resposta para aliviar o clima em momentos de tensão, pediu então que fossem solicitadas as imagens das câmeras de segurança que alguns proprietários instalam nas portas da frente de suas casas para monitorar qualquer pacote roubado ou visitantes indesejados. “Sua campanha então deveria ter investido em câmeras de segurança”, ela brincou. /TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

Copyright 2021 by Carol Leonnig and Philip Rucker. Reprinted with permission from Penguin Press. All rights reserved.

*Carol Leonnig é uma repórter investigativa no The Washington Post, onde trabalha desde 2000. Ela ganhou o Prêmio Pulitzer em 2015 pelo seu trabalho sobre falhas de segurança e má conduta dentro do Serviço Secreto.

* Philip Rucker é o chefe da equipe que cobre a Casa Branca no The Washington Post. Ele entrou para o Post em 2005 e já cobriu o Congresso, a Casa Branca na época de Barack Obama e as campanhas presidenciais de 2012 e 2016. Rucker também é coautor do bestseller "A Very Stable Genius" e é analista político para a NBC News e o MSNBC.