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Lendo Putin: desequilibrado ou atacando cautelosamente os medos do Ocidente?

Incerteza sobre o que pensa presidente russo adiciona incógnitas à guerra da Rússia contra a Ucrânia

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Por Redação
Atualização:

WASHINGTON - Por duas décadas, Vladimir Putin atacou seus rivais chamando-os de imprudentes e impulsivos. Mas seu comportamento ao ordenar uma invasão da Ucrânia – e agora colocar as forças nucleares da Rússia em alerta máximo – faz com que alguns no Ocidente questionem se o presidente russo se tornou perigosamente instável.

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Nos últimos dias, Putin divagou na televisão sobre a Ucrânia, repetiu teorias da conspiração sobre neonazismo e agressão ocidental e repreendeu seu próprio chefe de inteligência estrangeira diante das câmeras do outro lado de um salão do Kremlin, onde estava sentado sozinho. Agora, com as sanções do Ocidente ameaçando paralisar a já debilitada economia russa, Putin ordenou o maior estado de prontidão para armas nucleares, culpando as sanções e o que chamou de “declarações agressivas contra nosso país”.

A incerteza sobre seu pensamento adiciona incógnitas à guerra da Rússia contra a Ucrânia. As autoridades ocidentais devem confrontar Putin, pois também se perguntam se ele compreende ou se preocupa com as consequências cataclísmicas de seus atos – e se está intencionalmente se aproveitando das suspeitas de longa data sobre ele.

Um assessor do presidente francês Emmanuel Macron, que conversou com Putin na segunda-feira, disse que o líder russo respondeu a Macron “sem demonstrar irritação, de maneira muito clínica e muito determinada”.

“Podemos ver que, com o estado de espírito do presidente Putin, há um risco de escalada”, acrescentou o assessor, que falou sob condição de anonimato. “Existe o risco de manipulação do presidente Putin para justificar o que é injustificável.”

O presidente russo Vladimir Putin visita ocanteiro de obras da Agência Espacial Nacional em Moscou; líderes estrangeiros tentam decifrá-lo Foto: Sergei Guneyev/Sputnik/Kremlin Pool via AP

Líderes estrangeiros há muito tentam entrar na cabeça de Putin e já erraram antes. E Putin está mostrando, nesta crise, muitas das mesmas características que exibiu desde que se tornou o líder da Rússia. Putin dirigiu invasões de vizinhos, desenrolou teorias da conspiração e falsidades descaradas, e ordenou operações audaciosas que incluíram interferências nas duas últimas eleições presidenciais dos EUA.

Putin sozinho tomou decisões marcantes como a anexação da península da Crimeia na Ucrânia em 2014, consultando apenas seu estreito círculo de veteranos da KGB e mantendo todos os outros no escuro. Ele tem sido cercado por tenentes relutantes em arriscar suas carreiras ao pedir cautela ou emitir opiniões adversas.

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Putin também falou sobre a guerra nuclear e sobre como uma vez pensou que tal conflito terminaria com os russos indo “para o céu como mártires”.

Especialistas dizem que Putin pode estar usando o espectro do conflito nuclear para quebrar o crescente apoio à defesa da Ucrânia e forçar concessões. Seus últimos comentários também sugerem que as sanções estão funcionando.

“Temos que saber que isso é um sinal de que estamos chegando até ele”, disse Jim Townsend, ex-vice-secretário assistente de defesa e membro sênior do Center for a New American Security. 

Autoridades nos EUA ficaram alarmadas com um ensaio de 5 mil palavras assinado por Putin e publicado em julho que argumentava que russos e ucranianos são um só povo e atribuía quaisquer divisões a conspirações estrangeiras. Um funcionário do governo Biden, falando sob condição de anonimato, disse que a comunidade de inteligência estava preocupada que Putin estivesse operando a partir de “um lugar emocional” e impulsionado por queixas de longa data.

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Mais recentemente, Macron foi se encontrar com Putin, com quem teve vários telefonemas longos antes da invasão. Um alto funcionário do gabinete de Macron disse na semana passada que Putin “não era mais o mesmo”, havia se tornado “mais rígido, mais isolado” e, em sua essência, havia se desviado para a abordagem agora em andamento.

Durante um jantar de cinco horas entre os dois líderes, Putin passou mais tempo reclamando da expansão da Otan e da revolução de 2014 na Ucrânia do que discutindo a crise imediata.

O auto-isolamento percebido de Putin foi destacado em recentes reuniões oficiais transmitidas pela televisão estatal. Ele enfrentou líderes estrangeiros e assessores próximos sentado na extremidade oposta de uma longa mesa. Nenhum oficial russo que falou deu uma opinião divergente.

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"Ele não recebeu contribuições diretas de muitas pessoas", disse o senador americano Mark Warner, um democrata da Virgínia que preside o Comitê de Inteligência do Senado. “Então, estamos preocupados que esse indivíduo isolado tenha se tornado um megalomaníaco em termos de sua noção de si mesmo como a única figura histórica que pode reconstruir a velha Rússia ou recriar a noção da esfera soviética.”

Putin há muito está comprometido em recuperar a glória perdida, suprimir a dissidência e manter os vizinhos na órbita de Moscou. Em 2005, ele chamou o colapso da União Soviética de “a maior catástrofe geopolítica do século”. A Rússia travou uma guerra com a Geórgia, anexou a Crimeia, apoiou separatistas no leste da Ucrânia e, no início deste ano, enviou tropas para ajudar a reprimir protestos no Casaquistão.

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Seus ataques públicos à soberania ucraniana remontam a muitos anos. Em 2008, ele teria dito ao presidente George W. Bush: “George, você precisa entender que a Ucrânia nem é um país”.

Um ano antes disso, ele demonstrou sua raiva contra os EUA e a Otan em um discurso crucial na Conferência de Segurança de Munique, criticando a expansão da aliança para o leste e atacando a intervenção militar americana no exterior. Os EUA estavam atolados na época na Guerra do Iraque, lançada com base em falsas afirmações sobre o Iraque ter capacidade de armas nucleares.

“Os Estados Unidos ultrapassaram suas fronteiras nacionais em todos os sentidos”, disse Putin na época. “Isso é visível nas políticas econômicas, políticas, culturais e educacionais que impõem a outras nações.”

O deputado Chris Stewart, um republicano de Utah que faz parte do Comitê de Inteligência da Câmara, disse que não tinha visto evidências, antes da invasão da Ucrânia, de que Putin estava se comportando irracionalmente, e observou que outros líderes mundiais na história foram considerados irracionais em outros contextos. Putin, disse ele, tem “um apetite incrível por risco quando se trata da Ucrânia”.

Dois anos atrás, Putin endossou a versão mais recente de uma política russa de dissuasão nuclear que permite o uso de armas atômicas em resposta a um ataque nuclear ou agressão envolvendo armas convencionais que “ameaçam a própria existência do Estado”.

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Um associado de Putin, Dmitry Medvedev, que serviu como presidente substituto quando Putin mudou para o cargo de primeiro-ministro devido aos limites de mandato, disse em 2019 que uma medida do Ocidente para cortar a Rússia do sistema financeiro SWIFT equivaleria a uma efetiva declaração de guerra, um sinal de que o Kremlin pode ver as sanções ocidentais como uma ameaça equivalente à agressão militar. As sanções anunciadas nos últimos dias incluem cortar os principais bancos russos da SWIFT. Desde então, o rublo despencou.

Em 2018, Putin disse a uma audiência que a Rússia não atacaria primeiro em um conflito nuclear, mas teorizou sobre a retaliação contra um ataque inimigo iminente, acrescentando com um sorriso: “Seríamos vítimas de agressão e chegaríamos ao céu como mártires. E eles simplesmente morrerão e nem terão tempo de se arrepender.”

James M. Acton, co-diretor do Programa de Política Nuclear do Carnegie Endowment for International Peace, disse que não acredita que uma guerra nuclear seja iminente, mas que há um potencial real de escalada. Outra possibilidade seria Putin usar táticas não-nucleares cada vez mais brutais na Ucrânia.

Acton sugeriu encontrar uma “rampa de saída” que pudesse permitir a Putin uma vitória percebida. Em 1962, durante a crise dos mísseis cubanos, os EUA concordaram secretamente em remover mísseis nucleares da Turquia em troca da retirada dos soviéticos de Cuba. “Mas não tenho certeza de que ele sabe em sua própria mente como seria uma rampa de saída agora”, disse Acton.

Jeffrey Lewis, especialista em política nuclear do Middlebury Institute of International Studies, disse que não estava imediatamente preocupado com uma escalada nuclear. Mas um perigo de enviar sinais públicos sobre armas nucleares é que eles podem ser difíceis de interpretar, disse Lewis, assim como o mundo está tentando entender os últimos movimentos e intenções de Putin.

“Ele está isolado, tomando decisões ruins e perdendo”, disse Lewis. “E isso é perigoso.” /AP

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