Líder sul-africano terá pela frente desafios gigantescos

Se presidente quiser mudar o país, precisa restaurar as instituições, reformar a economia e os serviços públicos

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Por The Economist 
Atualização:

Para uma noite de domingo em Soweto, Johannesburgo, poucos lugares são melhores que o restaurante Chaf Pozi. A cerveja rola, o churrasco assa e os clientes dançam com descontração e grande senso de ritmo. É um espetáculo empolgante e também revelador, pois indica o grau de progresso que a África do Sul atingiu nos 25 anos transcorridos desde o fim do apartheid, o brutal sistema de domínio branco estabelecido em 1948. Nesse restaurante da cidade dormitório, os fregueses que pagam cerca de 140 rands (US$ 10) por uma refeição pertencem na maioria à classe média negra, que cresceu significativamente desde 1994. Eles se entrosam tranquilamente com frequentadores brancos.

Ramaphosa cumprimenta eleitores em Soweto Foto: Michele Spatari / AFP

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O mundo presta hoje menos atenção à África do Sul do que fazia uma gearação atrás. A libertação de Nelson Mandela da prisão em 1990 e sua vitória nas primeiras eleições democráticas do país quatro anos depois capturou a imaginação global. E, embora o interesse tenha diminuído, o país, que foi às urnas na terça-feira, continua importante. Isso se dá em parte por razões materiais. A África do Sul é a economia mais industrializada da África, o centro comercial do continente e seu principal ator no cenário global. É também importante por seu simbolismo. Ao superar uma história de repressão e racismo, dá esperanças a todos os outros países, no continente e além dele.

A África do Sul é hoje um lugar melhor para se viver do que era em 1994. Uma Constituição liberal protege os direitos de todos os cidadãos, não importando sua raça. Mais necessidades básicas dos pobres foram atendidas. A porcentagem de casas sem eletricidade caiu de 42% em 1996 para 10% em 2016, enquanto o número de atingidos pela fome também despencou. Os negros são mais da metade da classe média do país, segundo pesquisa. Isso ainda está muito abaixo da proporção de negros no total da população (80%), mas é um sinal de indiscutível avanço. Os negros sul-africanos hoje compram mais casas nos subúrbios que os brancos da faixa equivalente. 

A maioria dos sul-africanos acha que as relações raciais estão melhores hoje que em 1994. Pesquisa divulgada em 2016 pelo Instituto de Relações Raciais (IRR), um centro de estudos, constatou que 54% dos consultados achavam que as relações estavam melhores do que uma geração atrás, enquanto para 22% elas continuavam iguais e para 20% houve uma piora. Segundo a mesma pesquisa, apenas 5% dos sul-africanos consideravam que o racismo era o pior problema do país. 

Há outros sinais de que as tensões continuam diminuindo. A grande maioria de pais diz não se preocupar com a raça dos professores dos filhos. O casamento inter-racial ainda é raro, mas a proporção aumentou de 1 em 303 em 1996 para 1 em 95 em 2011. A cultura popular reflete algumas dessas mudanças. Em The Bachelor (O Solteiro), um programa popular de TV, um sul-africano branco escolhe a companheira entre 24 mulheres de diversas raças. Embora a animosidade racial persista, as relações do dia a dia em escolas, universidades e locais de trabalho estão melhorando lentamente.

Essas são as boas notícias. A má é que a maior parte do progresso ocorrido desde 1994 deu-se antes de 2009. Foi quando Jacob Zuma começou sua presidência de nove anos, durante a qual o violento cleptocrata e seus apaniguados saquearam empresas estatais, pilharam governosmunicipais e estaduais e devastaram instituições legais encarregadas de impedir tais abusos. A corrupção no governante Congresso Nacional Africano (CNA) vinha antes de Zuma e continua depois dele, mas foi o ex-presidente que a levou a níveis estratosféricos. 

Estrago

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Enquanto o governo Zuma exauria a economia, o gasto público crescia. A relação dívida/PIB aumentou de 26% em 2008-9 para 56% em 2018-19. A renda per capita está mais baixa hoje do que em 2013. Uma análise do Standard Bank sugere que, em relação à trajetória do país antes de Zuma, o PIB encolheu 1,1 trilhão de rands (US$ 78 bilhões), o país perdeu 300 bilhões de rands (US$ 21 bilhões) em impostos e mais de 1 milhão de empregos desapareceram.

O estrago dos anos Zuma foi além da economia. Numa sociedade profundamente desigual e com passado violento, um senso de compromisso mútuo é especialmente importante. No entanto, embora a África do Sul tenha uma das maiores reservas minerais do planeta, o bem de que mais necessita – confiança – está em falta. 

Os dados parecem confirmar isso. Em fevereiro, o medidor Edelman Trust, uma pesquisa anual dessa empresa de relações públicas, concluiu que apenas 21% dos sul-africanos confiam no governo, o índice mais baixo entre os 26 países pesquisados. Pesquisa do Afrobrometer publicada no ano passado encontrou baixos níveis de confiança em instituições como a polícia, na qual dois terços da população não acreditam. Outra pesquisa da mesma organização pan-africana publicada em outubro indicou que 62% dos sul-africanos estão dispostos a trocar democracia por um líder não eleito que “restaure a lei e a ordem e dê moradia e empregos à população”.

Quase metade dos sul-africanos nasceram após o fim do apartheid – a chamada “geração nascida livre” – e a frustração com a democracia frequentemente é maior entre os jovens. No restaurante Chaf Pozi, grande parte dos jovens tem queixas. “Fizeram muito pouco pelos negros”, diz Leside Kgasago. Sechaba Nkitseng acrescenta: “Em 1993, você e eu podíamos finalmentetomar uma cerveja e discutir política – o que foi uma enorme mudança. Mas eu ainda acordo num barraco no Soweto, com meus pais desempregados”.

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A África do Sul tem 0,8% da população do mundo e 3,2% de seus desempregados. Um quarto da população tem vida de rico. Os outros três quartos lutam para sobreviver. “Se o desespero dos pobres não for levado a sério, chegaremos ao ponto em que uma multidão vai marchar para a West Street (distrito financeiro de Johannesburgo) e pôr fogo nos bancos”, escreveu Frans Cronje, do IRR.

Felizmente, Zuma não é mais presidente. Em fevereiro de 2018, após uma batalha interna no CNA, Cyril Ramaphosa sucedeu ao rival. Ainda adolescente no Soweto, o novo líder, de 66 anos, prometeu ao pai que chegaria lá. 

Provavelmente, ninguém tem mais experiência política que ele na África do Sul. Em 1980, Ramaphosa dirigiu o Sindicato Nacional dos Mineiros. Bobby Godsel, do conglomerado mineiro Anglo American, qualificou-o de “o negociador mais competente que já conheci”. Essa competência foi testada nos anos 90, quando Ramaphosa se tornou secretário-geral do CNA e liderou as nagociações para a transição para a democracia. 

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No fim dos anos 90, Mandela, contrariando seus instintos, cedeu a pressões do CNA e apontou como seu sucessor Thabo Mbeki, em lugar de Ramaphosa. Após anos no mundo dos negócios, Ramaphosa voltou à política. Em 2012 foi eleito vice-presidente do CNA e, em 2014, vice-presidente do país. 

Apoio

Críticos perguntam o que ele fazia enquanto a África do Sul era saqueada. Amigos dizem que ele juntavan forças para enfrentar a ala de Zuma na conferência do CNA de 2017 – persuasivo, paciente e, se necessário, sem regras. Em 15 de fevereiro de 2018 tornou-se presidente, com a renúncia de Zuma. 

As pesquisas previam a vitória de Ramaphosa ontem. Grande parte do establishment sul-africano, incluindo muitos empresários, o apoia. “Ele é a última esperança para a democracia”, diz Colin Coleman, executivo do Goldman Sachs para a África Subsaariana.

Seria ingenuidade depositar tanta esperança em uma só pessoa.Embora Ramaphosa signifique um grande avanço em relação a seu predessessor, terá pela frente desafios imensos. Se ele realmente quiser mudar a situação, vai precisar restaurar instituições em frangalhos e ao mesmo tempo adotar reformas radicais na economia e nos serviços públicos. Para isso, terá de contrariar interesses de seu próprio partido, e rápido. Ramaphosa pode ser paciente, mas a África do Sul tem pressa./ TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

* © 2018 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

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