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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|Lourival Sant'Anna: Explosão em Beirute implodiu sistema político do país

Líbano mostra que não se pode construir um país com base em privilégios e corrupção

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Atualização:

Com as 2.750 toneladas de nitrato de amônio, implodiu o sistema político, social e econômico do Líbano. Esse país de empreendedores, com uma alegria de viver tão parecida à dos brasileiros, é o símbolo máximo da gestão por meio da troca de favores e acomodação de interesses.

Isso explica como militares, juízes, promotores, bombeiros, fiscais, engenheiros, químicos e burocratas permitiram que fosse guardada dessa forma uma bomba capaz de matar mais de 150 pessoas, ferir 5 mil e destruir os adoráveis centro revitalizado e orla de Beirute, os populosos bairros adjacentes e grande parte do porto que recebia e armazenava 80% dos grãos do país.

Helicóptero é usado para apagar incêndio após explosão no porto de Beirute. Foto: Lorenzo Tugnoli for The Washington Post

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A verdadeira surpresa é que a tragédia tenha demorado tanto. A absurda displicência, que lembra os acidentes recorrentes no Brasil, como o desabamento da barragem de Brumadinho e de outras estruturas de concreto, foi causada por um jogo de empurra entre as autoridades.

O navio russo com a carga vinda da Geórgia e destinada a Moçambique parou na costa libanesa em 2013, por violar normas de navegação e não pagar os salários dos tripulantes. No ano seguinte, advogados da empresa dona do navio avisaram a Autoridade Portuária da Marinha do perigo de manter esse carregamento armazenado.

A resposta foi que eles deviam escrever para o Ministério da Justiça, que respondeu que a decisão era do Ministério dos Transportes, que esclareceu que o caso devia ser encaminhado à Autoridade Portuária. E assim se passaram 6 anos.

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Em países árabes e latinos, a função da burocracia é assegurar a própria continuidade. Ela presta serviços a si mesma, não aos contribuintes. Por isso se especializa em alongar os processos.

Com apenas 6 milhões de habitantes, o Líbano é um mosaico de denominações cristãs, sunitas, xiitas e drusos. Por essa diversidade, combinada com sua geografia e história, que o tornam uma mescla apaixonante de Oriente e Ocidente, já se disse que o Líbano não é um país, mas uma mensagem.

Com o tempo, deixou de ser uma mensagem positiva, sem se tornar um país. O Estado existe para distribuir empregos e contratos entre as famílias estendidas, organizadas em clãs. A ocupação dos cargos públicos não tem relação com qualificação.

Esse sistema disfuncional se tornou ainda menos sustentável com o assassinato do primeiro-ministro Rafic Hariri, em 2005. Empresário do setor imobiliário, Hariri atraiu bilhões em investimentos das monarquias árabes do Golfo para a revitalização da área destruída na terça-feira.

O veredicto contra quatro membros do grupo xiita Hezbollah responsabilizados pelo atentado a bomba que o matou seria anunciado na sexta-feira pelo Tribunal Penal Internacional. Por causa da tragédia, foi adiado para o dia 18. A ascensão do Hezbollah como maior força política e militar do Líbano colocou fim aos investimentos, e o país mergulhou numa crise que culminou na moratória em março deste ano. O Hezbollah é patrocinado pelo Irã, adversário regional das monarquias do Golfo.

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Em outubro, a tentativa do governo de cobrar imposto de 20% sobre chamadas de WhatsApp desencadeou protestos nas ruas contra esse sistema de privilégios, ineficiência e corrupção.

O primeiro-ministro Saad Hariri, filho de Rafic, renunciou. Em seu lugar, Hassan Diab assumiu com um gabinete de “tecnocratas”, que na verdade obedece ao Hezbollah. A Constituição reserva a presidência da República aos cristãos, a do Parlamento aos xiitas e a chefia do governo aos sunitas, para evitar o predomínio de um grupo sobre os outros.

Silos que estocavam grãos foram destruídos na região portuária de Beirute Foto: AFP

Vencedor, juntamente com seus aliados, das eleições de 2018, com 53% dos votos, o Hezbollah conseguiu neste ano pela primeira vez controlar as três instâncias: o presidente Michel Aoun e o presidente do Parlamento, Nabih Berri, também são seus aliados. O Líbano segue sendo uma mensagem: não se constrói um país com base em privilégios, corrupção e autoritarismo.

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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