Argentina, foi a glória. Eleito papa, a notícia da escolha do portenho Jorge Mario Bergoglio varreu as ruas de Buenos Aires. Jornalistas invadiram Flores, o bairro de classe média onde ele nasceu. Até andar no ônibus número 70, a linha municipal que o religioso sempre tomava, virou programa turístico. "Deus é argentino", escreveu o autor argentino Martín Caparrós, nas páginas do New York Times, entre brincalhão e triunfante.
Convenhamos, tanto o país sul-americano quanto a Igreja de São Pedro precisavam de bons ventos, ou pelo menos de um bom biombo, em meio a tamanha tormenta histórica. A Argentina tem a inflação e a dissidência em alta, enquanto sua diplomacia após o referendo nas Malvinas (Yes, são britânicos) segue na defensiva.
Ineditismo. A Igreja também agradece o frescor do novo pontifício, com sua evidente simpatia, humildade e ineditismo. Como um colegiado, com seu núcleo duro de europeus, escolheram um cardeal "quase do fim do mundo", como definiu o próprio Bergoglio. É história para os vaticanistas contarem. Mas o fato de que o novo pastor de Roma - o primeiro jesuíta, primeiro latino e o primeiro Francisco - costuma andar de ônibus, usa iPhone e conta piadas, caiu como um bálsamo numa casa contundida por escândalos. "Deus os perdoem pelo que fizeram", brincou com os cardeais.
Mas mal dissipou a fumaça branca e já surgiu outro tema indigesto, desta vez longe da Santa Sé. A história é antiga e se refere à atuação ambígua do bispado argentino durante a ditadura militar, há mais de quatro décadas. Mas a julgar pela celeuma que já provocou na imprensa, o assunto ameaça ensaiar uma incômoda sobrevida.
Nos anos 70, Bergoglio era um padre com carreira promissora que chegou a principal da Companhia de Jesus. Embora conservador, o catolicismo argentino tinha sua dissidência, parte dela debaixo da regência do jesuíta.
Entre os inconformados, estavam dois jovens padres, o húngaro Franz Jalics e o argentino Orlando Yorio, que trabalhavam nas favelas de Buenos Aires. Para a junta militar, cutucar os pobres era missão do diabo e não perdoava nem quem usasse batina.
As versões variam, mas, segundo seus críticos, em vez de escorar os sacerdotes, Bergoglio teria feito jogo dúbio, comprometendo-os no momento mais delicado.
O chefe da Companhia de Jesus chegou a avisar seus subordinados da boataria que os classificava como subversivos e simpatizantes da guerrilha. Em seguida, prometeu os defender das infâmias. Finalmente, dizem, virou-lhes as costas, desligando-os da Companhia e, assim, abandonando-os à própria sorte. O resultado: Jalics e Yorio foram presos por cinco dias, que viraram cinco meses, repleto de torturas bárbaras.
De lá para cá, houve lágrimas, enterros, intenso debate e alguma penitência. De sua parte, Bergoglio nega qualquer conluio com a ditadura. No ano passado, em nome da Igreja, fez um pedido coletivo de desculpas à nação, primeiro por ter "discriminado muitos irmãos" como também por "não nos ter comprometido o suficiente em defender seus direitos".
O Vaticano apressou-se em defendê-lo, denunciando as críticas "caluniosas e difamatórias" promovidas por grupos "anticlericais de esquerda", com a intenção de difamar a Igreja.
O padre Yorio morreu de causas naturais em 2000. Jalics, com 85 anos, está em retiro espiritual, mas disse, por meio do porta-voz da ordem jesuíta na Alemanha, onde vive, que "está reconciliado com o que ocorreu" e acrescentou: "não posso julgar o papel de padre Bergoglio nesses acontecimentos".
A conciliação de Jalics pode abafar a polêmica argentina. Mas, como dúvidas dificilmente prescrevem, o novo líder da Igreja Católica já começa seu pastoral na penumbra.