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Maduro importa inteligência artificial da China criada para controle social

Regimes autoritários, principalmente na África e na Ásia, são os maiores clientes de tecnologia chinesa desenvolvida para espionar cidadãos; na Venezuela, sistema é usado no cartão da pátria, que controla de exames de sangue até consumo de comida

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Por Rodrigo Turrer
Atualização:

“Todo mundo deve tirar seu cartão da pátria, porque isso nos permitirá saber quem está se beneficiando de qual projeto, quem não é beneficiado, e desmascarar alguns salafrários.” Nicolás Maduro descrevia assim em 2017 o documento com tecnologia capaz de cruzar, em menos de 30 segundos, as informações do titular: de exames de sangue à retirada de comida, gastos com gasolina e hábitos na internet. A ferramenta importada da China permite ao chavismo monitorar dois terços dos 30 milhões de venezuelanos.

“Todo mundo deve tirar seu cartão da pátria, porque isso nos permitirá saber quem está se beneficiando de qual projeto, quem não é beneficiado, e desmascarar alguns salafrários", disse Maduro em 2017 Foto: Miguel Gutiérrez / EFE

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Quem desenvolveu o novo sistema usado no cartão da pátria foi a gigante chinesa ZTE, em uma parceria que se estendeu para outras áreas. A empresa tem um largo histórico de controvérsias – sofreu sanções e proibições nos EUA por supostamente usar programas e softwares para espionar americanos e empresas americanas. A ZTE é a menina dos olhos do governo chinês, que cada vez mais está exportando seus programas de inteligência artificial

Em 2015, a China lançou seu plano “Made in China 2025”, para dominar as indústrias tecnológicas de ponta. Isso foi seguido, no ano passado, pelos planos para o país ser líder mundial no campo da inteligência artificial até 2030 e construir uma indústria de US $ 150 bilhões. 

O mundo em desenvolvimento é uma grande oportunidade para concretizar tais ambições. A China não quer apenas dominar esses mercados. Ela quer usar os países em desenvolvimento como um laboratório para melhorar as próprias tecnologias de vigilância. Só no ano passado, a China exportou mais de US$ 5 bilhões em tecnologia de inteligência artificial (IA). 

A China não faz distinção entre clientes. Nos últimos dois anos, exportou para países democráticos, como Alemanha, França e Argentina. Mas seus clientes mais assíduos têm sido regimes com diferentes graus de viés autoritário: Venezuela, Rússia, Azerbaijão, Armênia, Irã, Turquia, Paquistão, Ruanda e Quênia. 

Em geral, regimes com traços autoritários que desejam manter um rígido controle social sobre a população e sobre seus opositores. “É uma via de duas mãos: ao mesmo tempo em que exportam tecnologia, os chineses usam esses países como cobaias para os próprios experimentos”, afirma Steven Feldstein, professor de políticas públicas da Universidade Boise. 

Quando os governos que adotam os softwares fiscalizam manifestações e reuniões de opositores, dão acesso a empresas chinesas a um banco de dados cada vez maior.

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A Venezuela é o exemplo mais bem acabado do projeto chinês. Além da tecnologia para o cartão da pátria, os venezuelanos aceitaram em um pacote de empréstimo chinês uma tecnologia de reconhecimento facial desenvolvida pela empresa CloudWalk Technology, uma startup com sede em Guangzhou. A tecnologia de última geração de reconhecimento facial é capaz de identificar em poucos segundos qualquer cidadão filmado por uma câmera em lugar público.

No caso venezuelano, as tecnologias permitem ao chavismo estender sua capacidade de vigilância dos cidadãos a níveis alarmantes. No ano passado, o governo prometeu um bônus financeiro a quem comparecesse nos centros de votação na eleição presidencial. Para receber o bônus, o eleitor precisaria registrar que votou, em uma máquina instalada fora de alguns centros eleitorais. 

Ao conceder um subsídio para o cidadão que vote em uma eleição, desde que ele registre seu voto com o cartão da pátria, o chavismo sabe quem votou em determinado distrito eleitoral, mas principalmente quem não votou ou não registrou seu voto com o cartão. 

“Trata-se de um controle sofisticado e extremamente perigoso. Com o cartão da pátria é possível cruzar todos os dados do usuário e mapear seus hábitos, seus costumes, suas necessidades”, disse ao Estado Anthony Daquin, que já foi o principal assessor de segurança da informação do Ministério da Justiça da Venezuela, mas deixou o país em 2009. 

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Ele participou da primeira comitiva venezuelana a visitar a China para conhecer os programas de IA desenvolvidos no país. “Foi depois daquela visita que o chavismo soube que poderia ter total controle social sobre a população. O cartão da pátria com chip tem apenas este objetivo”, disse. Desde o lançamento pelo presidente venezuelano, esta espécie de RG paralelo já foi adotado por 20 milhões de venezuelanos para obter subsídios do governo.  Benito Urrea, um diabético de 76 anos, disse à Reuters, no fim do ano passado, que um médico do Estado recentemente negou a ele uma prescrição de insulina e o chamou de “radical de direita” porque ele não se inscreveu para votar. Como alguns outros cidadãos venezuelanos, especialmente aqueles que se opõem ao governo de Maduro, Urrea vê o cartão com suspeita. “Foi uma tentativa de me controlar através das minhas necessidades”, disse. 

África é mercado atraente para tecnologia chinesa

Os países da África têm sido o principal mercado de teste para as tecnologias de controle social da China. O Zimbábue adotou em abril uma das mais recentes tecnologias chinesas.

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A CloudWalk Technology assinou um acordo com o governo para fornecer um programa de reconhecimento facial em massa que consegue computar em poucos segundos dados completos da vida de uma pessoa reconhecida por alguma câmera de segurança.

Tanzânia, Etiópia e África do Sul também usam o software. O acordo permite acesso a sistemas financeiros inteligentes, segurança de aeroportos, ferrovias e rodoviárias, além de um banco de dados facial nacional.

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Assim como dezenas de outros acordos de cooperação com países africanos, os pactos com Tanzânia e Zimbábue foram firmados no âmbito do programa One Belt, One Road (“Um cinturão, uma rota”), o plano de investimento em massa da China em obras de infraestrutura em 68 países.

Para especialistas, a China se beneficia da exportação de sua inteligência artificial não apenas em termos financeiros. Um estudo recente do Laboratório de Mídia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) testou a precisão de três importantes fornecedores de software de reconhecimento facial: Microsoft, IBM e Megvii (uma empresa chinesa). 

O estudo descobriu que, ao tentar identificar o sexo de uma pessoa a partir de uma imagem, a taxa de erro para homens de pele mais clara era inferior a 1%, enquanto para mulheres de pele mais escura era de até 35%. Isso ocorre porque a precisão da IA depende dos dados que são alimentados e, em todo o mundo, o reconhecimento facial tem sido treinado em rostos predominantemente brancos e masculinos, mesmo dentro da China.

“Esse tipo de software precisa de um banco de dados e, ao exportar para países cuja população tem biotipo diferente do chinês, ela alarga seu banco de dados e permite que o programa tenha mais capacidade de reconhecimento”, afirma Tobias Burgers, professor da Universidade Livre de Berlim e pesquisador de sistemas cibernéticos na segurança e no conflito militar.

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