Marmitas, coquetéis molotov e treinamentos: ucranianos contam como estão resistindo à invasão russa

'Estadão' conta a história de famílias e jovens que decidiram ficar na Ucrânia e defender suas cidades contra a chegada dos soldados russos

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Por Fernanda Simas
Atualização:

O casal ucraniano Viktor Úrin e Svitlana Úrina mora na cidade de Dnipro e ficou sabendo que a guerra havia começado após um telefonema da filha, Olga, 37 anos, que vive no Brasil desde 2018, com o marido, brasileiro, e o filho de dois anos. A ligação ocorreu após um ataque russo ao aeroporto da cidade. “Quase morri de desespero quando vi a notícia, pois o aeroporto fica a 15 minutos do condomínio dos meus pais. Liguei para eles e lhes acordei. Assim eles descobriram que a guerra havia começado”, conta a ucraniana.

Os aparelhos se calam primeiro. Depois, os mísseis vêm para cegar os olhos eletrônicos da defesa antiaérea. Foto: Reuters - 24/2/2022

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Os pais e o avô de Olga continuam na Ucrânia, assim como primos de segunda grau e amigos. Todos decidiram ficar no país e lutar contra a invasão da Rússia.

“Durante os primeiros 3 dias, eu dormi no máximo 3 horas porque ficava esperando a manhã chegar e ler que Dnipro estava ok e Kiev continuava lutando. Fiquei com as mãos tremendo o tempo todo e tomei susto toda vez que ouvia um avião passando. Ficava pensando nos meus pais e amigos, nunca vivi isso em minha vida”, diz Olga, que consegue se comunicar todos os dias com os parentes e amigos por aplicativos de mensagens e redes sociais.

A conversa sobre deixar a Ucrânia existiu, mas os pais da ucraniana afirmaram que ficarão e isso só mudará caso a Rússia tome o controle do país europeu. “Eles querem ficar em casa, rezando e apoiando o nosso Exército. Tenho o vovô bem velho em Lutsk, ele não vai conseguir sair. No caso dos meus pais, a vida deles, os amigos, tudo está em Dnipro. A minha mãe é professora de música para crianças, teve tantos alunos durante a vida profissional. ‘Como vou deixar eles e fugir?’, ela me perguntou. Estou com o coração apertado toda hora desde quinta-feira passada, mas entendo e respeito a posição deles. É como a maioria dos ucranianos pensam”, afirma Olga.

Casa da família de Evgeniya foi alvo de bombardeio russo em Kiev nos primeiros dias da guerra e ficou parcialmente destruída Foto: Reprodução / Arquivo pessoal

Em casa, cozinhando

Viktor Úrin, 60 anos, e Svitlana Úrina, 58 anos, passam os dias monitorando a situação militar pela internet e preparando marmitas para auxiliar o Exército e os voluntários. Eles moram no 25.º andar em um condomínio na cidade de Dnipro, que foi alvo dos ataques russos logo no primeiro dia da guerra.

Quando começam a tocar as sirenes, os dois precisam pegar as bolsinhas com os documentos, dinheiro e celular e correr para um lugar mais seguro. “É bem perigoso porque pode faltar tempo para eles se esconderem em caso de um ataque grave”, explica Olga, a única que fala português de sua família. 

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O casal deixa sua casa para comprar comida no mercado, prepara os pratos e coloca tudo em caixas que são entregues para as equipes de voluntários que vão entregar aos locais necessários.

Viktor Úrin (lado direito na frente), Svitlana Úrina (direta, em pé) e Olga (no centro) com a família, no batizado do filho em Kiev, em dezembro do ano passado Foto: Arquivo pessoal / Olga

Preparando coquetéis molotov

Anastasia Chernenko, 36 anos, é uma das melhores amigas de Olga e vive em Kiev. Desde o início da invasão russa, ela tem passado os dias fabricando coquetéis molotov em sua casa. 

Com a ajuda de amigos, a gerente de comunicação e Relações Públicas sai para comprar a cerveja, jogam o líquido fora e usam as garrafas. Os homens levam gasolina e outras substâncias químicas necessárias para a preparação dos explosivos e as mulheres levam roupas velhas cortadas em pedaços. “Pronto, já temos tudo o que é necessário”. 

Anastasia se refugia em um bunker após as sirenes tocarem em Kiev; ucraniana prepara coquetéis molotov para ajudar os soldados Foto: Reprodução / Arquivo pessoal

Nos primeiros dias da guerra, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, pediu que apopulação saísse em defesa do país, pegando em armas ou fazendo coquetéis molotov. 

Ievgen Klopotenko é um famoso chef de cozinha ucraniano e responsável pela criação do projeto social Nova Nutrição Escolar. Agora, ele transformou seu restaurante em um abrigo anti-bombas e local para alimentar soldados e voluntários que combatem o Exército russo. Com 704 mil seguidores em seu Instagram, Klopotenko também postou um passo a passo de como fazer os coquetéis molotov.

Postagem no Instagram do chef de cozinha Ievgen Klopotenko ensia ucranianos a prepararem coquetéis molotov Foto: Reprodução / Instagram

Luta armada

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Alguns amigos de Olga resolveram defender o país na linha de frente da guerra. O governo ucraniano aprovou uma lei que permite a formação de equipes de defesa territorial, das quais os civis podem fazer parte. 

Um deles estudou com Olga no colégio, é um amigo de infância. Oleksandr, de 36 anos, é gerente de logística em Dnipro. E agora treina para poder lutar. Outro é Petro, de 45 anos, amigo dos pais de Olga. Cada um deles tem dois filhos e todos continuam na Ucrânia

Oleksandr treina e se prepara para combater os soldados russos; ele é um dos civis que decidiram pegar em armas e defender o país da invasão russa Foto: Reprodção / Arquivo pessoal

É preciso se cadastrar num escritório local do Exército ucraniano, passar por uma entrevista mínima e receber as instruções e treinamento básico, então recebem as armas. Olga explica que a forma de ajudar vai além. “Alguns voluntários são médicos ajudando. Outros doam os carros deles ao Exército. Outros compram as roupas e coletes a prova de balas.”

As crianças e a guerra

A maior parte dos mais de 800 mil refugiados da guerra da Ucrânia são mulheres e crianças. Mas explicar o que está acontecendo para aquelas crianças que continuam nas cidades ucranianas é uma tarefa difícil. 

As crianças são levadas com brinquedos para os bunkers e os pais tentam tornar alguns momentos lúdicos para evitar sustos maiores. É o caso de Diana, de 6 anos, filha de Ihor, primo de segundo grau de Olga. Quando a menina deixa o bunker na cidade de Lutsk, a primeira reação é de alegria. A família deixou Kiev e está morando em Lutsk por ser mais seguro para as crianças (Diana e seu irmão de 1 ano de idade). 

Diana, de 6 anos, sai do bunker por um tempo e não esconde a alegria ao posar para foto que foi enviada aos amigos de seus pais Foto: Reprodução / Arquivo pessoal

“A conversa com as menores, começou como uma brincadeira. Mas as bombas caindo não permitiram que isso durasse muito. Os maiores já entendem tudo. ‘Mamãe, você falou que a sua vovó sobreviveu à 2.ª Guerra. Então a gente vai conseguir sobreviver também’, foi a conversa que a filha de um dos meus amigos teve com a mãe dela”, diz Olga. 

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Refugiados

Entre uma refeição e outra para os soldados ucranianos, Viktor e Svitlana também recebem em sua casa deslocados da cidade de Kharkiv e ajudam no que é preciso.

Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), o número de deslocados deve crescer, assim como o de refugiados é preciso garantir a proteção deles. “As pessoas deslocadas internamente devem ser protegidas e seu acesso a um lugar seguro garantido”. 

Refugiados da Ucrânia chegam à Romênia para escapar da invasão da Rússia - e evitar congestionamentos maciços na fronteira polonesa.Foto de Daniel MIHAILESCU/AFP 

Segundo o Comitê, muitos ucranianos já estão sem água, eletricidade e conectividade. “A primeira preocupação das pessoas é com suas famílias, as pessoas estão tentando desesperadamente entrar em contato com seus familiares, mas a conectividade com a internet é muito ruim”, informou o CICV em nota. 

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