MICROCRÉDITO E CRIME ORGANIZADO FINANCIAM TERRORISMO NA EUROPA

Pressionada por novas legislações internacionais adotadas após o 11 de Setembro, Al-Qaeda reformula métodos para alimentar radicais islâmicos de recursos e as grandes transferências dão lugar ao trabalho de formigas

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Por Andrei Netto , correspondente e Paris
Atualização:

PARIS - Em 4 de dezembro de 2014, o ex-prisioneiro desempregado Amedy Coulibaly solicitou ao banco francês Cofidis uma linha de crédito para o consumo. Uma total de € 6 mil lhe foi liberado sem maior burocracia. Em 9 de janeiro de 2015, em um vídeo divulgado horas após sua morte, o autor de dois atentados em Montrouge e Paris que deixaram cinco mortos - quatro deles judeus - explicou a razão do empréstimo: financiar seus atos terroristas e a compra de armas para os irmãos Said e Cherif Kouachi, autores do ataque a Charlie Hebdo.

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Eu os ajudei no seu projeto lhes dando alguns milhares de euros para que eles comprassem o que ainda precisavam comprar", explicou Coulibaly na gravação.

Segundo estimativas parciais, perpetrar os três atentados, que deixaram 17 vítimas em Paris e Montrouge, não teria custado à célula terrorista implantada na capital francesa mais de € 20 mil - valor destinado à compra de armamentos e à operacionalização do plano de ataque e fuga.

Esse montante teria sido obtido pelos jihadistas por meio de uma complexa forma de coleta de recursos que hoje caracteriza o terrorismo internacional: o microfinanciamento. É por meio de salários obtidos em empregos legais, mas também de fraudes contra o sistema financeiro, de crime organizado e do desvio de doações de organizações não-governamentais e universidades que o células terroristas viabilizam ações em países como a França.

Ataque ao 'Charlie Hebdo' Foto: Reuters

Na última semana, o Estado mergulhou em documentos oficiais e ouviu ex-dirigentes de serviços secretos, especialistas em financiamento clandestino, acadêmicos, líderes comunitários muçulmanos de periferia e religiosos para reconstituir o subterrâneo do dinheiro que alimenta a engrenagem do terrorismo islâmico na Europa. As conclusões derrubam em parte um mito: o de que governos de petromonarquias árabes, como Arábia Saudita e Catar, alimentam com verba a guerra santa no Ocidente.

Derrubam em parte porque em 2013 um relatório realizado pelo Centro Europeu de Inteligência Estratégica e Segurança (ESISC) para o Parlamento Europeu indicou que grupos salafistas wahabistas - ultraconservadores - situados no Golfo Pérsico ainda financiam milícias religiosas armadas em várias partes do Oriente Médio e do Norte da África, o que acaba afetando o Ocidente de forma indireta. "Uma das razões do aumento do peso de formações salafistas entre grupos rebeldes é o fato de que eles dispõem de acesso a financiamento mais fácil", diz o documento, assinado por Claude Moniquet, diretor-presidente do centro belga.

Experts europeus consideram que grupos como Estado Islâmico e as ramificações da Al-Qaeda são cada vez mais independentes, produzindo sua própria riqueza a partir do tráfico de petróleo e gás, extraídos, transportados e vendidos em caminhões, cisternas e barris em regiões sob seu controle, como o norte da Síria e do Iraque.

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Uma fonte muito menor de recursos seriam organizações humanitárias islâmicas e famílias abastadas ligadas ao business no Golfo Pérsico, que continuariam a contribuir para a causa jihadista. Em última instância, esse dinheiro também pode estar servindo à máquina de evangelização e de propaganda de grupos ultraconservadores na Europa, mas não para o terrorismo em si. "Não creio que países como Arábia Saudita e Catar financiem redes de extremistas violentos. Mas sabemos que financiam escolas e centros de formação nos quais o pensamento literalista e dogmático é ensinado a jovens, que mais tarde podem se voltar para a violência", diz Tariq Ramadan, professor de Estudos Islâmicos Contemporâneos da Universidade Oxford, na Grã-Bretanha. Essas informações são corroboradas pelo cientista político Mohamed-Ali Adraoui, pesquisador do Instituto Universitário Europeu de Florença e especialista em salafismo na Europa.

Também ex-membros de serviços secretos da França confirmam a prática. É o caso de Louis Caprioli, ex-subdiretor de Luta contra o Terrorismo da Direção de Vigilância do Território (DST), antigo nome do serviço de inteligência interior do país até 2008. "As medidas para conter o macrofinanciamento tomadas no pós-11 de Setembro funcionaram. Países como Arábia Saudita, Kuwait e outros tiveram de se enquadrar", explica. Segundo Caprioli, a Al-Qaeda ainda conta com "alguns ricos doadores", mas Estados e de organizações governamentais não injetam dinheiro no jihadismo na Europa. "Fizemos enormes pesquisas durante 20 anos. Não há um financiamento direto de um país para as células que atuam em nosso território", garante, reconhecendo, porém, que há financiamento muçulmano de longa data às periferias da França e de outros países, para obras que favorecem o proselitismo, como a construção de mesquitas.

Para Mathieu Guidère, professor da Universidade de Toulouse e especialista em financiamento de jihadistas, o problema dos dutos internacionais de financiamento foi resolvido pelo Patriot Act de 2001, nos Estados Unidos, a legislação que entre outras medidas criou o acordo Swift e estabeleceu mais transparência para transferências em dólar e euro, moedas que concentram 80% das transações internacionais. "Desde então as grandes doações deram lugar a transferências internacionais em pequeno valor, de € 200, € 300, € 400, a diferentes beneficiários. No final da célula, há uma pessoa que recolhe esse dinheiro, reunindo € 2 mil, ou € 5 mil para a compra de fuzis, pistolas, explosivos, lança-foguetes RPG", explica Guidère, que pondera: até o microfinanciamento internacional já vem sendo muito bem monitorado.

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Diante do aperto no monitoramento, células terroristas na Europa têm, a rigor, de ser independentes na maior parte de sua existência. Para tanto, são usados recursos obtidos de forma legal, como o trabalho dos próprios jihadistas ou a tomada de empréstimos - como fez Coulibaly -, e também com assaltos e com o crime organizado. O valor empregado, explica Guidère, pode eventualmente ser reembolsado quando o extremista viaja a países do Oriente Médio para realizar treinamento militar.

Na prática, diz o expert, o grande suporte dado por organizações terroristas como a Al-Qaeda não é mais o capital. "O maior aporte de Al-Qaeda e do Estado Islâmico é ideológico, que dá justificação religiosa e legitima a ação, e operacional, por meio do treinamento para operações e para a montagem de comandos."

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