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De vistos a alicates, como Belarus fomenta onda migratória à Europa

Líderes europeus acusam Minsk de transformar refugiados em 'armas' para pressionar o bloco

Por Jane Arraf e Elian Peltier
Atualização:

SULEIMÂNIA, Iraque - O aumento súbito no deslocamento de migrantes do Oriente Médio para Belarus, que agora é o foco de uma crise política na Europa, dificilmente foi um acidente.

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O governo de Belarus afrouxou as regras de visto em agosto, disseram agentes de viagens iraquianos, tornando um voo para o país uma viagem mais palatável para a Europa do que a perigosa travessia marítima da Turquia para a Grécia.

Ele aumentou os voos da companhia aérea estatal e, em seguida, ajudou ativamente a canalizar migrantes da capital, Minsk, para as fronteiras com a Polônia, Letônia e Lituânia.

E as forças de segurança bielorrussas deram-lhes orientações sobre como entrar nos países da União Europeia, até mesmo distribuindo alicates para o corte de arame e machados para serem utilizados nas cercas da fronteira.

Esses movimentos, que os líderes europeus caracterizaram como uma manobra cínica para transformar os migrantes “em armas” em um esforço para punir a Europa, abriram as portas para pessoas desesperadas para fugir de uma região assolada pela instabilidade e alto desemprego.

Agora, milhares de pessoas estão empacadas ou escondidas ao longo da fronteira em um frio extremo, sem serem desejadas pelos países da União Europeia ou, as circunstâncias estão ficando claras, pelo país que as atraiu para lá em primeiro lugar.

A maré humana transformou cidades como a Suleimânia, na região do Curdistão do Iraque, em agitados portos de partida para migrantes ansiosos por fazer uma viagem cara e arriscada pela chance de uma vida melhor na Europa.

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Migrantes disseram ter recebido ajuda de Belarus para chegar à fronteira da UE Foto: WP

Conforme a notícia nas redes sociais de que Belarus oferecia uma rota para a Europa viralizou, o número de migrantes virou uma bola de neve.

Mala Rawaz, um agente de viagens em Suleimânia, disse que vendia cerca de 100 pacotes por semana para viagens a Belarus. Os pacotes incluíam passagem aérea para um terceiro país, acomodação em trânsito e um visto para Belarus.

No mercado da cidade, Bryar Muhammad, de 25 anos, estava fazendo bons negócios na quinta-feira, vendendo roupas quentes.

 “Roupas boas para Belarus!" ele gritou, segurando suéteres grossos acrílicos e jaquetas de inverno tiradas de uma caixa de papelão. “Para a neve de Belarus!"

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Mesmo quando jovens famílias no Iraque estavam oferecendo suas casas como garantia para levantar dinheiro para a viagem, aumentaram as evidências de que o líder autocrático da Belarus, Alexander Lukashenko, estava orquestrando a migração para fabricar uma crise para a União Europeia.

A companhia aérea estatal bielorrussa Belavia aumentou os voos do Oriente Médio para Minsk, disseram autoridades europeias. As autoridades bielorrussas facilitaram a emissão de vistos através da agência de viagens estatal Tsentrkurort, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores da Lituânia.

Os migrantes que chegavam a Minsk eram alojados em pelo menos três hotéis do governo, segundo o ministro da Defesa da Letônia, Artis Pabriks, e Franak Viacorka, conselheiro sênior de uma líder da oposição bielorrussa, Sviatlana Tsikhanouskaya.

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Pabriks disse que agentes da inteligência bielorrussa estavam envolvidos na transferência de migrantes para as fronteiras e que ônibus militares foram usados.

Vários migrantes iraquianos disseram que as forças de segurança bielorrussas lhes forneceram ferramentas para romper a cerca da fronteira polonesa.

Bayar Awat, um curdo iraquiano que estava no lado bielorrusso da fronteira polonesa, disse que guardas bielorrussos ajudaram seu grupo a chegar à fronteira apontando uma rota que contornava a passagem oficial da fronteira e emergia perto de um corte na cerca da fronteira.

“A polícia de Belarus nos guiou até a floresta, depois apontou direções para nos conduzir para dentro da floresta e nos manter longe da passagem oficial da fronteira”, ele disse.

Na quinta-feira, ouviu-se um soldado bielorrusso ao telefone ordenando que um curdo iraquiano encaminhasse um grupo de 400 a 500 migrantes da fronteira com a Lituânia para a fronteira com a Polônia.

“Todas as pessoas que se mudam para cá vão para Brest”, o soldado disse a ele em um inglês ruim, mencionando a cidade bielorrussa na fronteira com a Polônia, porque havia muitos migrantes na fronteira com a Lituânia.

Quando alguns migrantes tentaram deixar a floresta gelada para retornar a Minsk, muitos foram impedidos por guardas bielorrussos, deixando-os presos na fronteira, eles disseram.

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Autoridades europeias dizem que essas medidas são parte do esforço de Lukashenko para retaliar a União Europeia por impor sanções depois que ele reivindicou a vitória na disputada eleição de 2020.

“A retórica de Lukashenko, a política de vistos e o súbito fluxo de migrantes neste verão apontam para o envolvimento do estado e das agências de viagens de Belarus", disse Gustav Gressel, membro sênior de política do Conselho Europeu de Relações Exteriores em Berlim.

Na sexta-feira, em um esforço para deter a crise, várias companhias aéreas tomaram medidas para limitar o número de pessoas voando do Oriente Médio para Belarus. Agentes de viagens no Iraque disseram que a Turquia e o Irã começaram a cancelar passagens para Minsk para passageiros iraquianos, sírios e iemenitas na quinta-feira, e que o governo impediu os agentes de viagens de vender até mesmo passagens em trânsito para Belarus no início da semana.

Mas isso pouco importava para os iraquianos desesperados, que já estavam encontrando rotas alternativas por Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.

“Eu soube que a situação não é boa em Belarus, mas tenho que ir porque não há vida aqui, nem oportunidades de emprego, nem direitos humanos, nem igualdade e justiça, nenhuma alegria”, disse Amer Karwan, um carpinteiro que foi com três amigos a uma agência de viagens em Suleimânia na quinta-feira para pegar as passagens que eles esperavam que os levassem para Belarus.

Karwan, que fez 20 anos na quinta-feira, havia emprestado US $3.500 de um parente para a viagem. Ele disse que o grupo não se abalou com o aviso do agente de viagens de que as passagens pelo Irã e pela Turquia não eram reembolsáveis e que não havia garantia de que chegariam a Belarus.

Ironicamente, a maior fonte de migrantes, a região semi-autônoma do Curdistão no Iraque, é considerada a mais estável e segura do país.

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Ao contrário de muitos de seus familiares que se tornaram refugiados durante a era de Saddam Hussein, desta vez os curdos iraquianos não estão fugindo da guerra ou do genocídio. Eles estão procurando um futuro que nem mesmo a relativa paz do país lhes proporcionou.

Apesar da prosperidade externa do Curdistão iraquiano, os jovens se desesperam principalmente com a falta de empregos e com a corrupção, a repressão e os conflitos tribais que muitas vezes se sobrepõem ao sistema legal.

Eles estão fazendo empréstimos e pedindo dinheiro emprestado a parentes para fazer a viagem.

A crise aumentou o preço dos vistos para a Belarus, que custavam cerca de US $90 e agora custam cerca de US $1.200. A maioria dos migrantes disse que estava pagando cerca de US $3.000 por pacotes, incluindo o visto, passagem aérea e alguns dias de acomodação.

Muitos migrantes também deixam milhares de dólares em depósitos em lojas de transferência de dinheiro para enviar aos atravessadores que prometem levá-los à fronteira. Vários disseram que essa taxa era de cerca de US $3.000. Mas muitas vezes, disseram os migrantes, os atravessadores nada mais fazem do que apontar em que direção andar pela floresta densa.

Isso sem falar dos custos emocionais que um migrante enfrenta ao deixar sua casa e família para trás.

Na sexta-feira, Karwan, vestindo uma nova jaqueta de inverno verde-oliva e luvas, saiu de casa para pegar um táxi para o aeroporto de Erbil, a quatro horas de distância.

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Despedindo-se em Suleimânia, a mãe de Karwan e duas irmãs ficaram chorando no portão. Seu pai colocou dinares iraquianos em sua mão e esperou até que a porta do táxi se fechasse antes de enxugar as lágrimas.

“Eu me sinto péssima”, disse sua mãe, Bayan Omar. “Ele é meu único filho. Se eu impedi-lo de partir, o que ele faria? Ele me diz: ‘Você pode me garantir uma casa, um carro, uma vida, a chance de me casar?’ Não posso impedi-lo. ”

Mais tarde naquele dia, os voos de Karwan através de Teerã e Istambul foram cancelados. Ele estava esperando em Erbil para pegar outro voo por Dubai.

Para os que já chegaram em Belarus, a situação é sombria. Na fronteira com a Lituânia, vários milhares de migrantes foram empurrados contra cercas de arame farpado, impedidos de avançar ou voltar.

Jovens e famílias com crianças pequenas que haviam caminhado por dias na floresta densa estavam amontoados em acampamentos improvisados, queimando lenha para tentar se aquecer, de acordo com vídeos enviados pelos migrantes. Alguns tinham pequenas tendas pop-up, outros se enterravam em sacos de dormir no chão gelado.

No sábado, as autoridades polonesas acusaram soldados bielorrussos de destruir parte de uma cerca da fronteira perto da vila de Czeremcha e de tentar distrair os guardas da fronteira polonesa com raios laser e luzes estroboscópicas, a fim de ajudar os migrantes a cruzar para a União Europeia. O relato polonês dos eventos, no entanto, não pôde ser confirmado porque o governo de Varsóvia proibiu todos os não residentes, incluindo jornalistas e médicos, de entrar na área de fronteira.

Pelo menos nove migrantes morreram na Polônia nas últimas duas semanas, a maioria por exposição ao frio, de acordo com autoridades polonesas. Belarus não disse quantos morreram no seu lado da fronteira. A mídia polonesa noticiou na quinta-feira que um menino iraquiano de 14 anos morreu congelado perto da fronteira com Belarus.

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“Temos comida e água, mas não o suficiente”, disse um curdo iraquiano, que pediu para ser chamado pelo seu apelido, Bahadino. Ele enviou vídeos mostrando mulheres grávidas e crianças pequenas, algumas delas deficientes.

Ele também enviou um vídeo dele e de um pequeno grupo de migrantes segurando educadamente uma placa de papelão dizendo “Polônia - Desculpe”.

“Hoje pedimos desculpas à União Europeia e à Polônia”, ele disse . “Você sabe por que viemos para a fronteira e quebramos a cerca na fronteira. Pedimos desculpas por isso. ”

Mas ele não se desculpou por tentar entrar na Europa. Ele disse que não tem planos de voltar ao Iraque. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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