Minha foto deu fama ao soldado Dwyer. Teria influenciado em sua morte?

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Por Warren Zinn
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O e-mail foi um soco no estômago. "O soldado que você tornou famoso se matou no último sábado. Achei que você devia saber." Pensei que havia abandonado o fotojornalismo e a guerra há quatro anos e meio, quando troquei os campos de batalha poeirentos do Iraque e do Afeganistão pela escola de direito em Miami. Mas essas palavras me recordaram que a gente nunca se livra realmente do campo de batalha. Eu soube de imediato o que a mensagem significava: Joseph Dwyer estava morto. Dirigi atordoado o carro para casa e entrei em meu apartamento. E lá estava Dwyer, na parede, olhando para mim. Ele foi o tema de uma foto muito divulgada que tirei como fotojornalista "inserido" (que faz a cobertura de guerra lado a lado com um dos grupos em combate) durante as primeiras semanas da invasão americana do Iraque, em 2003. A foto captou o jovem médico correndo para a segurança com uma criança iraquiana ferida nos braços. A foto foi publicada em jornais do mundo inteiro e trouxe fama instantânea para Dwyer. Durante anos, eu deixei orgulhosamente exposta na parede a primeira página do USA Today com a foto. Foi um um feito tremendo. Eu tinha apenas 25 anos quando a tirei. Agora, porém, a imagem se impregnou de um significado diferente. Joseph Dwyer morreu de overdose de droga aos 31 anos. Eu havia lido notícias de que ele estava lutando contra um distúrbio de stress pós-traumático. Ele achava que estava sendo caçado por matadores iraquianos e havia entrado e saído do tratamento. Segundo sua mãe, Dwyer não pôde "superar a guerra". Mas, enquanto fitava sua imagem na minha parede, eu não conseguia fugir da pergunta: "Esta foto teve alguma coisa a ver com sua morte?" Segundo informações divulgadas por TVs e jornais, ele odiava a notoriedade que a foto lhe rendeu. Não pude deixar de me questionar sobre quanto aquele momento da foto - um mero 1/250 avos de segundo quando três vidas se cruzaram numa margem de rio no Iraque - contribuiu para os fardos que ele trouxe para casa? Se eu não tivesse tirado a foto, teria Dwyer terminado como terminou? Ele teria sido mais uma baixa da guerra? Na madrugada de 25 de março de 2003, menos de uma semana depois da invasão do Iraque, o 7º Regimento de Cavalaria do Exército dos Estados Unidos estava em Mishkab, ao sul de Bagdá, tentando se livrar de uma série de emboscadas. Eu estava acompanhando a unidade como fotojornalista para o Army Times. Protegido no interior de um blindado Bradley, consegui dormir em meio ao tiroteio intenso, mas fui despertado quando o chão começou a tremer. Aviões americanos lançavam bombas sobre combatentes iraquianos que estavam usando a cobertura de uma aldeia próxima às margens do Rio Eufrates para lançar seus ataques contra o 7º Regimento de Cavalaria. Agarrei meu equipamento fotográfico, vesti o capacete e o colete à prova de bala e procurei me arrastar para fora do Bradley. Abri a escotilha para ver o fogo engolfando as palmeiras que ladeavam o Eufrates. Alguns minutos depois, um homem apareceu, correndo da aldeia pela estrada sinuosa e poeirenta na direção dos soldados. Suas mãos estavam erguidas, uma delas segurando uma bandeira branca improvisada. Visivelmente abalado, ele disse que havia pessoas feridas na aldeia que precisavam de cuidados médicos imediatos. Temendo uma emboscada, o comandante da unidade disse ao homem que o Exército trataria dos feridos, mas eles deveriam ser trazidos para a estrada. O homem partiu. Alguns minutos depois, ele estava novamente correndo pela estrada poeirenta, desta vez carregando um garoto de 4 anos chamado Ali Sattar. Ali estava nu da cintura para baixo, e sua perna esquerda estava enfaixada num lenço branco encharcado de sangue. Quando o homem estava correndo na minha direção, eu disparei minha câmera, sentindo que alguma coisa especial estava se desenrolando diante de mim. Um médico do Exército apareceu subitamente à minha direita e correu para o homem iraquiano, que entregou a criança ferida a ele. Esse militar era Dwyer. Quando ambos se viraram para correr, Dwyer para um posto de socorro e o homem de volta para a aldeia, eu continuei disparando a câmera, pensando: "Espero que esteja em foco, espero que a exposição esteja certa, Deus, Warren, não estrague isto." Sabia que aquele era um momento que o mundo precisava ver - um momento de heroísmo americano, de compromisso americano com o salvamento de uma vida. RETORNO Em junho de 2003, alguns meses depois daquele incidente à margem do Eufrates, voltei ao Iraque para documentar o destino de Ali Sattar. Em Mishkab, passei horas mostrando capas de jornais e fotos do garoto aos moradores, até ser finalmente encaminhado à sua casa. Seu pai saiu com Ali nos braços. Os ferimentos em sua perna tinham sido grandes e ele não havia podido receber um acompanhamento médico adequado dos hospitais iraquianos. Ali não conseguia andar sem um manquejar doloroso, por isso seus parentes o carregavam para todos os lados. Passamos aquela tarde juntos às margens do Eufrates, tomando Pepsi e chá iraquiano e compartilhando chocolates enquanto eu mostrava à família as fotos que havia tirado de Ali. Ele era um típico menininho tímido, mas ficou apaixonado por sua foto, embora sua família camponesa não compreendesse por que ela significava tanto. Quando nos despedimos, um avião passou. O barulho dos motores deixou em pânico o garotinho e o medo se espalhou por seu rosto. Ali terá uns 9 anos agora. Não sei onde ele está, embora pense nele às vezes. Fico tentando imaginar se ele se acostumou com a guerra e superou seus medos. E se ele se recuperou por completo e é capaz de andar. Sei que houve um tempo em que Dwyer pensava em Ali também. E-MAIL Dwyer e eu não tivemos muito tempo para conversar no Iraque, exceto por algumas horas que passamos juntos no dia seguinte ao da foto, por isso fiquei surpreso ao receber um e-mail dele certo dia, um ou dois meses depois que voltei a Mishkab. Acho que ele havia voltado aos EUA então, ou ao menos não estava no Iraque, e queria saber se eu sabia o que acontecera ao garoto da foto. Respondi ao e-mail e contei-lhe sobre minha viagem para encontrar Ali. "Não posso acreditar que você voltou ao Iraque... Eu temia que o garoto não resistisse", ele respondeu em 6 de agosto de 2003. "Gostaria de ter voltado com você àquela aldeia." Em novembro, ele mandou nova mensagem. "Oi Warren, é o Joseph Dwyer, o sujeito que você deixou famoso. Espero que esteja bem e em segurança." Ele perguntou se eu tinha outras fotos daquele dia que pudesse lhe enviar e se eu ficara sabendo mais alguma coisa sobre Ali. Em janeiro de 2004, fui escalado para retornar ao território iraquiano por um terceiro período. Mas, depois de duas temporadas no Afeganistão e duas no Iraque, decidi que já era hora de pendurar minhas câmeras. A guerra havia cobrado um preço de minha família, de meus amigos e de mim. Não consegui encontrar razões para voltar e arriscar minha vida de novo. Essa é a diferença entre mim e soldados como Joseph Dwyer. Eu tinha o privilégio de encerrar minha participação quando quisesse. Os homens e mulheres das Forças Armadas não têm esse luxo. Larguei o jornalismo, mudei para Miami e logo depois me inscrevi numa escola de direito. Tive notícias de Dwyer um par de vezes depois, casualmente. Ele não me contara que enquanto eu me digladiava com Legislação Contratual, ele estava batalhando para se adaptar à vida civil depois de seu período de três meses no Iraque. Soube pela primeira vez de seus problemas com o distúrbio de stress pós-traumático (PTSD, na sigla em inglês) por uma matéria em 2005 sobre sua prisão no Texas, depois de uma reclusão no apartamento onde ele estava vivendo então. Ele achava que havia iraquianos do lado de fora tentando entrar, e estava atirando nos fantasmas. A última mensagem que Dwyer me enviou foi em 1º de dezembro de 2004. "Quando eu voltei, não queria mesmo falar sobre ter estado lá com ninguém", escreveu. "Agora, olhando para trás, foi uma das maiores coisas que eu já fiz. Espero que você sinta o mesmo sobre o que fez. Eu realmente acredito que você teve um papel importante nessa guerra ao contar a história de todos." Cerca de uma semana depois que Dwyer morreu, sua mãe me telefonou. Eu estivera tentando entrar em contato com ela para apresentar minhas condolências à família e fazê-los saber o quanto eu me sentia mal. Maureen Dwyer me contou que havia lido as reportagens que diziam que seu filho odiava a fama que a foto lhe trouxera e ela queria que eu soubesse que elas não eram verdadeiras. Ele amava a foto, disse Maureen.Ele sempre teve orgulho dela e só se sentia um pouco embaraçado por ser singularizado enquanto muitos outros soldados estavam fazendo exatamente o que ele fez. Não sei se a foto de Dwyer é a melhor que já tirei, ou a minha favorita, mas acho que ela representou alguma coisa importante. Na época, representou esperança. Esperança de que o que nós estávamos fazendo como nação no Iraque fosse a coisa certa. Esperança de que nossos soldados estivessem ajudando pessoas. Esperança de que soldados como Dwyer se preocupassem mais com a vida humana do que com qualquer outra coisa. Mas agora, quando olho para a foto, ela não me parece tão esperançosa. Ela me faz perceber que há tantos soldados fisicamente dilacerados e numa tal angústia mental que, para alguns deles, a esperança se transformou em desesperança. Isso, devo acreditar, foi o que aconteceu com Joseph Dwyer, que era assombrado pelos fantasmas do que ele vira no Iraque, pelos medos com os quais convivera por tanto tempo. Ele jamais conseguiu deixar para trás os campos de batalha. Foi imortalizado naquela imagem em que tentava preservar a vida. Mas não conseguiu preservar a própria vida. TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK *Warren Zinn cobriu as guerras no Afeganistão e no Iraque como fotojornalista para o ?Army Times? de janeiro de 2002 a dezembro de 2003. Hoje, estuda na Escola de Direito da Universidade de Miami. Escreveu este artigo para ?The Washington Post?

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