Morre George Shultz, secretário de Estado de Reagan que ajudou a encerrar a Guerra Fria

Republicano contribuiu para a desnuclearização do mundo e para o diálogo entre Israel e palestinos, mas também para a doutrina de ataques preventivos contra o terrorismo

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Por Redação
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WASHINGTON - George Shultz, secretário de Estado de Ronald Reagan que, nos anos 1980, identificou uma abertura diplomática que ajudou a acabar com a Guerra Fria, mas também contribuiu para um novo tipo de conflito ao defender ataques preventivos, morreu neste sábado, 6. Ele tinha 100 anos.

O ex-presidente Ronald Reagan, o ex-secretário de EstadoGeorge Shultzeo ex-vice-presidenteGeorge Bush Foto: Barry Thumma/AP

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“Um dos mais importantes formuladores de políticas de todos os tempos, tendo servido a três presidentes americanos, George Shultz morreu em 6 de fevereiro aos 100 anos”, disse o centro de pesquisa Hoover Institution, ao qual ele era filiado há décadas, em um comunicado publicado em seu site.

Shultz exerceu enorme influência em governos republicanos, e, com fala calma e tom racional, promoveu opiniões conservadoras sobre contenção dos gastos públicos, combate ao terrorismo e ausência de regulação governamental nos negócios.

Ele trabalhou em governos republicanos desde Dwight Eisenhower, ainda nos anos 1950. Na década seguinte, foi secretário do Trabalho e secretário do Tesouro do presidente Richard Nixon, a quem aconselhou durante o escândalo de Watergate, sem, contudo, sair manchado deste.

Mais tarde, passou mais de seis anos como secretário de Estado de Reagan, ajudando a reduzir de forma significativa as tensões com a União Soviética. Ele era o ex-ministro mais velho entre todos os sobreviventes de qualquer governo.

Em uma entrevista em março de 2020, Shultz criticou a política externa de Donald Trump. “No momento, não estamos liderando o mundo”, disse a um entrevistador. “Estamos nos retirando.”

Schultz assumiu a chefia da política externa americana em junho de 1982, quando Reagan estava no cargo havia 18 meses. Antes dele, o antecedeu o general Alexander Haig. Na época, os Estados Unidos tinham envolvimento com guerras na América Central, o Oriente Médio estava repleto de tensões e as relações com a União Soviética estavam péssimas, sem os países se falarem há anos.

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Shultz teria mais de 30 encontros com o então chanceler soviético, Eduard Shevardnadze, entre 1985 e 1988.  Ele percebeu como o novo líder soviético, Mikhail Gorbachev, era diferente de seus antecessores,  e que  havia espaço para acordos entre as potências em áreas como controle de armas, melhorias nos direitos humanos e cúpulas de alto nível entre Reagan e Gorbachev.

Então secretário de Estado George Shultz faz juramento no Congresso dos EUA Foto: Paul Hosefros/The New York Times

Quando deixou o cargo, em 1988, Schultz tinha negociado no ano anterior o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês), que constituiu uma medida histórica para começar a reverter a corrida armamentista nuclear. Pelo tratado, EUA e União Soviética retiraram armas atômicas de curto e médio alcance estacionadas em países europeus.

“É justo dizer que a Guerra Fria terminou durante os anos Reagan”, escreveu Shultz em suas memórias de 1993, Turbulência e triunfo: meus anos como secretário de Estado. “O alívio de quatro décadas de tensão opressiva mudou o cenário global. Haveria menos armas nucleares apontadas para grandes cidades, menos guerras por procuração na África, Ásia e América Latina.”

Shultz foi um dos primeiros defensores de medidas agressivas antiterrorismo. Na época, ataques graves contra alvos americanos, incluindo o bombardeio de um quartel dos fuzileiros navais no Líbano, tinham acontecido. Ele propôs uma nova estratégia para esse problema: “Ações preventivas ou preemptivas contra terroristas antes que eles ataquem”, como ele disse em um discurso de junho de 1984. A ideia ganhou apenas apoio silencioso na época, mas se tornou um princípio da chamada "guerra ao terror" de George W. Bush.

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Reagan também tomou medidas contra terroristas e Estados acusados de os apoiarem, incluindo o bombardeio da Líbia em 1986, após o país ser considerado cúmplice no bombardeio de uma discoteca em Berlim na qual morreram dois soldados americanos.

No Oriente Médio, Shultz se dedicou a persuadir o líder da Organização para a Libertação da Palestina, Yasser Arafat, a abandonar a luta armada contra Israel. Perto do final do governo Reagan, Arafat anunciou a mudança em um discurso na Assembleia-Geral da ONU. No dia seguinte, Reagan encerrou a proibição de negociações dos EUA com a OLP, vigente havia13 anos, embora tenham se passado mais cinco anos até os Acordos de Oslo, durante o governo Clinton.

Na América Central, Shultz não conseguiu ditar os rumos da política externa americana. A Casa Branca, o Conselho de Segurança Nacional e a CIA acreditavam que a ascensão de um governo de esquerda na Nicarágua depois da Revolução Sandinista de 1979 poderia levar a uma reação em cadeia em toda a região. 

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Enfrentaram esta possibilidade por meio de ações secretas, apoio a operações paramilitares e suporte a uma força contra-revolucionária, os contras. O Congresso cortou a ajuda aos rebeldes, mas as operações secretas para apoiá-los continuaram.

Shultz quase perdeu o emprego em 1986, quando denunciou uma venda secreta de armas ao Irã, em troca da libertação de reféns no Líbano, pelo Conselheiro de Segurança Nacional de Reagan, o vice-almirante John M. Poindexter, no caso Irã-Contras — o lucro das vendas de armas era direcionado às forças que combatiam o governo sandinista da Nicarágua, evitando a proibição ditada pelo Congresso. Shultz disse ao Congresso que o acordo de troca de armas por reféns estava “totalmente fora do sistema de governo pelo qual vivemos”. “Não acho que fins desejáveis justifiquem meios de mentir, enganar, de fazer coisas que estão fora de nossos processos constitucionais”, disse.

Durante o governo Reagan, os EUA melhoraram sua relação com Argentina, Uruguai, Bolívia e Equador, mas não com o Brasil. Em uma visita a Brasília em 1988, Shultz condenou práticas comerciais protecionistas brasileiras, particularmente as que dificultavam a venda de computadores e produtos de alta tecnologia americanos. Também criticou vendas de armas do Brasil a nações como a Líbia.

George Shultz cumprimenta o então ministro das Relações Exteriores da Rússia Eduard Shevardnadze, em uma reunião da ONU, em 1985 Foto: Fred R. Conrad/The New York Times

Schultz sobreviveu a ponto de ver seu legado ser desfeito: Donald Trump cancelou o acordo sobre armas nucleares de curto e médio alcance em agosto de 2019, alegando que a Rússia havia rompido o pacto ao desenvolver um novo míssil de cruzeiro.

Em um artigo conjunto no Washington Post, Shultz e Gorbachev afirmaram que abandonar o tratado constituía "um passo em direção a uma nova corrida armamentista, minando a estabilidade estratégica e aumentando a ameaça de um erro de cálculo ou uma falha técnica levarem a um guerra imensamente destrutiva”.

“As pessoas se esqueceram de seu poder. Na minha época, eu me lembro das armas nucleares. Nós sabíamos o que elas podiam fazer. Era muito claramente errado”, ele disse numa entrevista de 2019. / NYT

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