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Mundo desperdiça 63 mil caminhões de alimentos a cada 24 horas

Levantamento das Nações Unidas mostra que 931 milhões de toneladas de alimentos foram jogadas fora em 2019; comida seria suficiente para alimentar toda a população em insegurança alimentar do planeta

Por Paulo Beraldo
Atualização:

O planeta desperdiça 63 mil caminhões com 40 toneladas de alimentos todos os dias, indicou uma recente pesquisa da Organização das Nações Unidas (ONU). O relatório que engloba 54 países mostrou que, em 2019, foram para o lixo 931 milhões de toneladas de alimentos nas residências, no varejo, nos restaurantes e em outros serviços de alimentação. Os dados não levaram em conta etapas como produção no campo, armazenagem e distribuição. 

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"Essa quantidade seria suficiente para oferecer três refeições por dia para as 690 milhões de pessoas em insegurança alimentar do planeta. Nós temos alimentos suficientes, esse não é o problema", afirmou Daniel Balaban, representante do Brasil do Programa Mundial de Alimentos (World Food Programme, na sigla em inglês), a maior organização humanitária do mundo. 

"Precisamos trabalhar os sistemas alimentares, produzir e fortalecer políticas públicas para que os alimentos cheguem a todos que necessitam", diz o especialista do PMA, braço humanitário da ONU com atuação em 88 países que recebeu o Nobel da Paz em 2020

Índice de Desperdício de Alimentos 2021, produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e pela ONG britânica WRAP, integra os esforços das agências da ONU para reduzir pela metade o desperdício de alimentos até 2030. Foto: Ben Nelms/Reuters

O Índice de Desperdício de Alimentos 2021, produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e pela ONG britânica WRAP, integra os esforços das agências da ONU para reduzir pela metade o desperdício de alimentos até 2030.

A pesquisa mostrou que, em nível global, 121 quilos de alimentos per capita, em média, são desperdiçados por consumidores por ano nas etapas de varejo e consumo de alimentos, sendo 74 quilos em casa. Também revelou que, em quase todos os países onde o desperdício foi mensurado, houve pouca variação do volume desperdiçado quando avaliado entre o nível de renda das pessoas.

"O achado mais interessante do estudo é que a renda dos países não explica a diferença entre quem desperdiça mais e menos, um dado alinhado com resultados de pesquisa recente feita no Brasil", comenta Gustavo Porpino, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Alimentos e Territórios). "Os fatores comportamentais explicam mais – em países de alta renda o desperdício estimado per capita é de 79 quilos no âmbito familiar, enquanto nos de renda média baixa é de 91 quilos por ano", afirma. 

Comportamento do consumidor

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Porpino, que há anos se dedica a estudar o desperdício de alimentos no Brasil e hábitos dos consumidores, diz que é preciso compreender as peculiaridades do comportamento de consumo da classe média baixa, que forma a vasta maioria da população mundial. 

"Esse segmento tem menos anos de estudo, mais dificuldade de planejar refeições, nem sempre tem meios para conservar bem os alimentos, o tempo, a disponibilidade e a habilidade para reaproveitar as sobras", afirma, citando ainda o orçamento apertado e o hábito de fazer uma compra mensal quando recebe o salário. 

Por isso, diz que são urgentes ações no Brasil - por ser uma potência agroambiental que ainda convive com a fome. "Exportamos mais de US$ 100 bilhões por ano em commodities agrícolas, mas ainda convivemos com esse passivo das perdas, do escoamento da safra, por uma infraestrutura inadequada e, ainda, quando chega na família, vemos o desperdício elevado por fatores comportamentais". 

Embora seja um país exportador, cerca de 10,3 milhões de brasileiros enfrentam dificuldades para obter alimentos diariamente, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – o equivalente à população de Portugal. 

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Por fim, Porpino ressalta que o desperdício de alimentos tem impactos ambientais, econômicos e sociais. "Essa é uma agenda de futuro - o setor agroalimentar brasileiro precisa unir esforços para incrementar a segurança alimentar e nutricional brasileira e, ao mesmo tempo, ter uma atuação mais forte e direcionada para a redução de perdas e desperdícios - uma visão sistêmica do campo à mesa". 

As Nações Unidas realizarão em outubro de 2021 a Conferência de Sistemas Alimentares (Food Systems Summit), um fórum com chefes de Estado e autoridades globais. Cada Estado-Membro foi convidado a definir um percurso nacional para atingir sistemas alimentares sustentáveis até 2030, de acordo com os objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU. Balaban e Porpino avaliam ser fundamental que o tema entre na agenda dos governos federal, estadual e municipal. 

Em 2015, Estados-membros da ONU se comprometeram com a Agenda 2030, que definiu os 17 objetivos do desenvolvimento sustentável Foto: Paulo Beraldo/Estadão

Conscientização é chave, diz oficial da ONU Meio Ambiente

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Clementine O'Connor, oficial de programas de Sistemas Alimentares Sustentáveis do PNUMA, diz que governos investiram em campanhas de conscientização e mudança de comportamento - ajudando os consumidores a reforçar hábitos de gestão de alimentos eficientes, como aproveitar melhor sobras alimentos, medir o tamanho das porções de arroz e massas, usar produtos mais velhos primeiro e congelar os excedentes. 

O'Connor afirmou que essas medidas fizeram países como Reino Unido e Holanda reduzirem o desperdício total de alimentos nas famílias em 24% em uma década. Ela também defende abordagens colaborativas como parcerias público-privadas como medidas eficazes para reduzir a perda e o desperdício de alimentos. 

"Os fabricantes e varejistas de alimentos estão se comprometendo com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 12.3 (reduzir pela metade o desperdício de alimentos no varejo e no consumidor e reduzir a perda de alimentos em toda a cadeia de abastecimento) envolvendo seus fornecedores, trabalhando para melhorar a previsão de pedidos e agilizar a doação de alimentos e lidar com resíduos", explica O'Connor.

A especialista diz ainda que os alimentos são o maior elemento isolado nos resíduos municipais em muitos países e políticas que visam retirar os alimentos dos aterros podem ser muito eficazes. Como exemplo, cita o uso de excedente de alimentos para fazer produtos mais duradouros, alimentar os necessitados e desviar resíduos com segurança para a alimentação animal e compostagem. 

"Sempre deveria ser mais barato doar alimentos em vez de enviá-los para aterros sanitários, mas muitas vezes não é o caso. Coletas separadas de resíduos de alimentos, impostos sobre aterros que aumentam com o tempo ou proibições de resíduos de alimentos em aterros têm motivado a usar melhor nossos alimentos", avalia.

Edifício da ONU em Nova York com luzes que imitam uma geleira derretendo. Mudanças climáticas e desenvolvimento econômico sustentável estão entre as principais pautas da entidade Foto: Paulo Beraldo/Estadão

Programas brasileiros

A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) avalia que informar o público sobre como reduzir o desperdício de alimentos, investir na infraestrutura da cadeia de abastecimento, treinar os agricultores com melhores práticas e reformar impostos sobre alimentos que levam a mais perdas e desperdícios são medidas que também geram impacto neste aspecto.

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Rafael Zavala, representante da FAO no Brasil, diz que a entidade tem uma plataforma para avaliar o desperdício que reúne informações sobre medição, redução, políticas, alianças, ações e exemplos de modelos de sucesso. "Essa é a maior coleção de dados online sobre quais alimentos são perdidos e desperdiçados e onde, além de ser um fórum de discussão sobre redução da perda de alimentos", afirma. 

Zavala cita também a experiência brasileira do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que trabalha a alimentação escolar como parte do direito humano à alimentação. O objetivo do programa, que engloba uma iniciativa internacional para multiplicá-lo em países da América Latina e do Caribe, é promover a formulação e a implementação de programas de alimentação escolar sustentáveis a partir da experiência brasileira.

"Dentro da PNAE, recentemente foi criada uma estratégia para registrar o desperdício no dia a dia por meio de uma tabela que é mostrada a todas as pessoas envolvidas (alunos, professores, merendeiras, cozinheiras, nutricionistas). Escolas com melhores resultados são recompensadas com base em incentivos", diz, citando que resíduos farão parte de compostos que servirão para hortas onde são produzidos alimentos consumidos nas escolas.