‘Na Al-Qaeda, maioria era contra o 11 de Setembro’
Jornalista mauritano diz que Abu Hafs, mentor espiritual de Bin Laden, tentou convencê-lo a não lançar ataques
Entrevista com
Lemine Ould M. Salem, autor de ‘A História Secreta da Jihad’
Entrevista com
Lemine Ould M. Salem, autor de ‘A História Secreta da Jihad’
29 de janeiro de 2018 | 05h00
Ao longo dos anos 90, quando já desafiava a maior potência política, econômica e militar do planeta, os EUA, o saudita Osama bin Laden contou com um amigo e conselheiro religioso, seu cúmplice de luta: o terrorista mauritano Mohamed Mahfoudh Ould el-Waled, mais conhecido como Abu Hafs. Por anos, ele foi considerado pelos serviços secretos do Ocidente como um dos mais altos membros do comando da Al-Qaeda. Esse é o personagem central do livro A História Secreta da Jihad (em tradução livre), que acaba de ser publicado na França pelo jornalista Lemine Ould M. Salem.
Com base nas memórias do terrorista, com quem ele estabeleceu o primeiro contato em 2015, o livro traz revelações sobre a vida de Bin Laden e sobre o jogo ambíguo que diferentes países desempenharam ao longo dos anos de perseguição. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estado:
Enfraquecida, a Al-Qaeda escolhe o Iêmen
Como vive Abu Hafs, que foi um dos mais altos membros da Al-Qaeda?
Abu Hafs vive em uma casa bem confortável, em um bairro chique da capital da Mauritânia (Nouakchott). Ele dá a impressão de gozar de plena liberdade. Mas creio que seja muito vigiado. Sei que não tem documentos, nem passaporte.
Hafs viveu por quase uma década com Bin Laden, mas você o define como moderado. Por que?
Na verdade, Hafs se define como um moderado, partidário do diálogo entre civilizações e religiões. Ele não nega suas convicções islamistas. É alguém que ainda sonha que o mundo muçulmano seja governado por um governo islâmico. É partidário da sharia – a lei islâmica – e do princípio do califado, embora com condições. Mas não é apoiador do Estado Islâmico. Creio que ainda tenha ambições políticas ou morais na galáxia islamista. Por isso, ainda é muito ouvido no mundo muçulmano. Hoje, é consultado por americanos ou europeus e participa de um programa suíço de luta contra a radicalização.
Quais eram os vínculos entre Hafs e Bin Laden?
Eram amigos. Hafs era seu mentor espiritual, seu confidente. Foi também mestre de toda a família Bin Laden quando ela partiu para o exílio no Irã. Os dois se conheceram em 1991, no Paquistão, e se encontraram no ano seguinte no Sudão, onde ouviu de Bin Laden, cercado dos chefes da Al-Qaeda, que deveria ficar a seu lado.
+ Al-Qaeda age na África desde os anos 1990
Nos anos 90, a rede de Bin Laden já havia cometido atentados graves. Hafs estava de acordo com a estratégia da Al-Qaeda
Não, ele sempre julgou que colocar em jogo a vida de inocentes era contraproducente, pois provocaria uma invasão dos países muçulmanos pelos EUA. No fim dos anos 90, segundo Hafs, surgiram as primeiras reclamações sobre a forma como Bin Laden gerenciava a Al-Qaeda. Ele tomava decisões importantes sem consultar ninguém. Hafs alertara Bin Laden que ele provocaria uma catástrofe para os muçulmanos com o 11 de Setembro.
Por que Hafs não foi ouvido?
Bin Laden acreditava que provocaria um novo Vietnã para os americanos. O grupo contrário ao 11 de Setembro era majoritário na Al-Qaeda. Mas, ainda assim, alguns acabariam participando do atentado. Isso revela o peso de Bin Laden.
Foi o perfil moderado que evitou que Hafs fosse preso e enviado a Guantánamo pelos EUA?
O que evitou sua prisão foi o fato de que ele se opôs ao 11 de Setembro. Os americanos souberam por meio de presos de Guantánamo que Hafs havia tentado convencer Bin Laden a não cometer os atentados nos EUA.
Qual a importância da fortuna de Bin Laden para a existência da causa jihadista?
Bin Laden não financiava apenas a Al-Qaeda, mas todos os grupos jihadistas próximos da Al-Qaeda. Creio que se Bin Laden não tivesse sido tão rico, a Al-Qaeda jamais teria sido o que ela foi, nem teria tido a importância que teve.
Hafs e Bin Laden passaram pela Irmandade Muçulmana. Ela é uma escola do radicalismo?
De fato, eles passaram pela Irmandade Muçulmana. Mas, em algum momento, julgaram que o movimento não era radical o suficiente, e deram o salto rumo a mais radicalismo. No seu caso, Hafs retornou. É um caso raro.
Hafs e Bin Laden conviveram com Abu Musab al-Zarqawi, fundador do Estado Islâmico. Quais são suas impressões a respeito desse terrorista?
Hafs descreve Zarqawi como um ex-ladrãozinho convertido ao Islã. Quando o conheceu, diz Hafs, já era alguém crente, correto, muito polido, embora radical, já impregnado da ideologia da guerra santa.
Muito já se falou sobre a ambiguidade do Paquistão na perseguição a Bin Laden...
Em determinado momento o chefe do serviço de inteligência do Paquistão encontrou-se com mulá Omar. Ele o informou que os EUA queriam que Bin Laden lhes fosse entregue. Após transmitir a mensagem, disse: “Era meu trabalho transmitir o recado. Mas, como muçulmano, lhe digo: não o faça”. Bin Laden jamais foi entregue pelos paquistaneses.
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