Na corda bamba

Esta eleição no Peru significará não uma mudança de governantes, mas do sistema

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Foto do author Mario Vargas Llosa
Por Mario Vargas Llosa
Atualização:

Se colocarmos um mapa da América do Sul à nossa frente, é incontestável que nos últimos anos as forças de esquerda conquistaram vitórias importantes. No gigante brasileiro, além das atrocidades cometidas pelo próprio Jair Bolsonaro e as atribuídas a ele pela imprensa estrangeira, que o odeia, os juízes liberaram Luiz Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores (PT) já está se preparando para a próxima eleição. Se os estrangeiros pudessem votar, Lula, o queridinho deles, já estaria eleito. Mas os brasileiros são mais cautelosos: lembram, sobretudo, que várias sentenças pesam sobre ele, por se aproveitar do poder e por corrupção. 

Álvaro Vargas Llosa, filho do escritor peruano Mario Vargas Llosa, participa de comício de Keiko Fujimori em Lima Foto: EFE/ John Reyes

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Já a candidatura do juiz Sérgio Moro à presidência da República – o homem que mandou o maior número de empresários, funcionários públicos e criminosos na história do Brasil para a prisão na Operação Lava Jato – vem perdendo força e agora parece estagnada, talvez extinta.

Na Argentina, a dupla Alberto Fernández / Cristina Kirchner parece mais estremecida a cada dia e a ruptura está no ar. Mas ambos são menos tolos do que se pensa e provavelmente manterão uma aparente cordialidade para manter o poder. O que não adianta muito, a julgar pela situação catastrófica do país.

O Chile não está muito melhor e tudo naquele país, que parecia ter feito seu dever de casa e crescido para se distanciar do restante da América Latina e atingir os níveis europeus, está agora um caos absoluto. O Partido Comunista, que havia encolhido até ser quase insignificante, é agora o principal partido político do país, liderado por jovens aguerridos de ambos os sexos que sonham com uma nação uniforme e uma economia controlada pelo Estado, que arruinaria uma sociedade que, ao que parecia, ia ser a primeira na América Latina a acabar com o subdesenvolvimento.

Mas quem se lembra disso agora? O Partido Comunista e os revolucionários e anarquistas da coligação Frente Ampla, e seus jovens furiosos, parecem ter o futuro imediato conquistado e, para piorar a situação, a direita – a ultradireita que é também ultracatólica – parece limitada ao bairro de classe alta de Las Condes. Como os 150 eleitos – talvez mais – vão escrever a nova Constituição? Arrancando os cabelos, é claro.

O país que acreditávamos estar na vanguarda passou para a retaguarda da América Latina em meio às devastações das quais um número é suficiente para medir a catástrofe: em menos de meia hora os rebeldes queimaram e destruíram oito das mais modernas e caras estações de metrô da América Latina.

Na Bolívia, as forças de Evo Morales voltaram ao poder e ele agora tem um candidato que promove e chama de “irmão” e “cholito” (mestiçozinho) em todos os seus discursos. Mas ele não é boliviano, mas peruano: Pedro Castillo, que disputa o segundo turno com Keiko Fujimori nas eleições peruanas que serão decididas hoje.

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A Colômbia, como se vê nos jornais, está pegando fogo por todos os lados e o presidente Iván Duque é atacado até por seu partido e seu mestre, o ex-presidente Álvaro Uribe, o acusa de ser fraco e não recorrer mais ao Exército para apaziguar as manifestações violentas que, guiadas pela influência venezuelana, querem tirar o poder dele.

O solitário Equador, com o também solitário Uruguai, países onde os eleitores têm sido mais sensatos do que o restante dos sul-americanos, são as raras exceções democráticas em um subcontinente que parece empenhado em ressuscitar o marxismo-leninismo que europeus e asiáticos se encarregaram de enterrar.

O caso do Peru, país que faz fronteira com cinco países sul-americanos e é alvo imediato do eixo cubano, venezuelano, boliviano e nicaraguense, será resolvido hoje entre o candidato dessa quadriga, Pedro Castillo, e Keiko Fujimori; os dois vencedores do primeiro turno eleitoral. Esta última tem reduzido a distância que tinha do rival, de mais de seis pontos, e Castillo vem diminuindo a vantagem suavemente até quase se igualar a Keiko, segundo as últimas pesquisas, um empate técnico. Quem quer que vença terá muitos problemas com um Parlamento altamente dividido, no qual será difícil, para qualquer governo, obter a maioria indispensável necessária para aprovar as leis.

Mas, ao contrário de outras, esta eleição no Peru significará não uma mudança de governantes, como até agora, mas uma mudança do sistema. Se Pedro Castillo vencer a eleição, o marxismo-leninismo-mariateguismo (como o definem seus seguidores) chegará ao poder batizado e sacramentado com os votos dos peruanos. E, como disseram claramente os dirigentes do partido Peru Livre, que apresentara este candidato, o de Vladimir Cerrón, eles não pretendem deixar o poder, assim como todos os regimes comunistas que existiram no passado no planeta e dos quais são exemplos sobreviventes Cuba, Venezuela e a Nicarágua do comandante Daniel Ortega e sua mulher, Rosario Murillo.

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Os peruanos querem isso? Um país devastado pela censura, pela incompetência econômica, sem empresas privadas ou investimentos estrangeiros, empobrecido por burocratas desinformados e servis, e uma polícia política que diariamente asfixia conspirações fantásticas criando uma ditadura mais feroz e sanguinária que qualquer outra que o mundo já tenha conhecido ao longo de sua história?

Muitos de nós, peruanos, acreditamos que não e decidimos votar em Keiko Fujimori. Ela se desculpou publicamente por seus erros do passado e ampliou consideravelmente sua equipe de governo, incorporando antifujimoristas convictos e declarados e se comprometendo a respeitar a liberdade de expressão, o Poder Judiciário e a entrega do poder após cinco anos, conforme estabelecido pela Constituição.

Não é certo que essas promessas lhe farão vencer a eleição. Mas, se a perder, o certo, isso sim, é que com Pedro Castillo no poder não haverá mais eleições limpas no Peru, e as supostas “consultas” eleitorais serão idênticas às farsas coletivas de Cuba, Venezuela e Nicarágua, a cada certo número de anos, durante os quais se pede à população que confirme com os seus votos os candidatos eleitos.

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Minha impressão é que boa parte da esquerda peruana está resignada a uma ditadura como a que se agiganta no país do pequeno partido de Vladimir Cerrón (que se formou médico em Cuba, onde viveu por dez anos), o ex-governador de Junín que não pôde se candidatar à presidência por seu partido por ter cometido crimes sancionados pelos juízes.

O surgimento de Pedro Castillo, um professor de Chota, região de Cajamarca, surpreendeu a população de Lima, que, de repente, descobriu que existiam as províncias, com enormes reivindicações contra a capital – que representa mais ou menos um terço da população, mas concentra a maior parte do poder econômico e político do país – e um ressentimento que a má gestão da pandemia agravou, pois matou, até agora, um a cada 200 peruanos (cerca de 180 mil pessoas), principalmente nas províncias e nos vilarejos das montanhas, o que é refletido como um espelho nestas eleições.

Mas ceder ao mais imediato, como as enormes distâncias que separam os ricos dos pobres no país e que esta pandemia tornou mais visíveis e dramáticas, é precipitar-se em um suicídio político que acabaria para sempre – ou por muito tempo – com a possibilidade de o país recuperar sua velha história, quando foi, no passado pré-hispânico, a cabeça de um império que alimentou a todos, ou nos 300 anos coloniais em que o vice-reinado peruano foi o mais próspero da América.

Tudo isso para se tornar um agente a serviço de Cuba e da Venezuela, países que, embora passem fome e tenham se transformado em prisões, sabem, acima de tudo, reprimir e controlar uma sociedade falida. Por isso fiz campanha para Keiko Fujimori e espero muito que ela ganhe esta eleição. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA © DIREITOS DE PUBLICAÇÃO EMTODAS AS LÍNGUAS RESERVADAS PARA EDICIONES EL PAÍS S.L. 2021