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Numa vila de 400 moradores na Ucrânia, civis armados esperam os russos para a batalha

Cidades do interior se juntaram à luta armada contra a invasão da Rússia, deixando de lado as rotinas da vida cotidiana das vilas

Por Maria Varenikova
Atualização:

KHOMUTYNTSI, Ucrânia - Os moradores apareceram como silhuetas nos faróis de carros e caminhões, alguns carregando armas, outros porretes, como se fossem gângsteres vagando pelas ruas.

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Eram homens e mulheres de uma vila local, formados em unidades de autodefesa nas vilas da região de Vinniitsiia, no centro da Ucrânia, antes mesmo da invasão da Rússia ao país, que ficaram silenciosas e escuras quando as luzes da rua se apagaram. Eles ficaram à beira da estrada, sob um céu muito baixo com estrelas brilhantes.

“Estou muito orgulhosa de nosso povo”, disse Oksana Mudrik, prefeita da vila de Khomutintsi, a cerca de 220 quilômetros a sudoeste de Kiev, capital da Ucrânia. “Nossa vila é tão pequena que eu estava pensando: 'Será que ainda temos alguém para patrulhar as ruas?' Mas em um dia após o início da guerra em Kiev, mais de 30 pessoas se inscreveram.”

Ucranianos hasteiam a bandeira do país em uma casa transformado em posto de obsrevação e controle no vilarejo de Hushchiintsi, no centro da Ucrânia Foto: Brendan Hoffman/The New York Times

A maior parte da atenção nos primeiros dias da guerra concentrou-se nas grandes cidades da Ucrânia, que são os principais alvos dos movimentos de tropas russas e palco de batalhas de rua e ataques de artilharia ensurdecedores. 

Mas no campo, um grande movimento está em andamento em vilarejos como Khomutintsi, enquanto ucranianos comuns – agricultores, donos de lojas, diaristas, motoristas de táxi – pegam em armas para se juntar a uma batalha que mudou abruptamente suas vidas.

A mobilização de civis que lutam contra quaiquer probabilidades de vitória tem sido uma das características distintivas da resistência inesperadamente feroz da Ucrânia. E embora possa terminar tragicamente, as autoridades ucranianas têm apontado para o esforço com orgulho.

Na vila de Hushchiiyntsi, moradores cavam uma trincheira e preparam um bunker para retardar o avanço das tropas russas Foto: Brendan Hoffman/The New York Times
Ucranianos carregam toras de madeia para construir um bunker e armar emboscadas contra soldados russos no vilarejo de Hushchiintsi Foto: Brendan Hoffman/The New York Times

“A liderança russa não entende que está em guerra não apenas com as Forças Armadas da Ucrânia, mas com todo o povo ucraniano”, disse o primeiro-ministro Denis Shmihal em uma entrevista coletiva no domingo. “E essas pessoas já se levantaram para a luta de libertação, a guerra de libertação contra os ocupantes.”

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Resistência feroz dos civis da Ucrânia

Manifestações de desafio foram registradas em todo o país. No leste da Ucrânia, onde colunas blindadas russas entraram em cidades e vilarejos, alguns moradores locais confrontaram os soldados com palavras raivosas.

No norte da Ucrânia, um homem se ajoelhou brevemente na frente de um tanque. Uma mulher ucraniana se filmou em um celular insultando um soldado russo, dizendo-lhe para colocar sementes de girassol no bolso, para que, quando ele morresse na Ucrânia, flores crescessem.

Em Khomutintsi, o grande prado que se estende ao longo do rio Postolova é normalmente um local de lazer. Os moradores pescam no rio o ano todo e nadam lá no verão. Mas neste fim de semana toda a vila se reuniu no prado para construir trincheiras, um posto de controle e abrigos subterrâneos.

Um trabalhador do serviço rodoviário da Ucrânia retira placas de trânsito perto do vilarejo de Kaliinivka, sudoeste do país; 'É importante que os russos se percam' Foto: Brendan Hoffman/The New York Times

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Mudrik, a prefeita, dirigiu seu carro no sábado à noite para verificar seus voluntários. Ela faz isso várias vezes todas as noites, enquanto as patrulhas mantêm guarda nas estradas do anoitecer ao amanhecer.

Por que o exército russo viria para Khomutintsi, um aglomerado de casas térreas, rebocadas de branco, hortas e estradas de terra, com cerca de 400 moradores, cercadas por florestas e campos? Pode parecer improvável. Mas se as tropas russas chegassem, elas não passariam despercebidas pela população local em vigilância.

“Estou chorando muito porque é muito difícil se acostumar com nossa nova realidade”, disse Mudrik. “Mas eu inclino minha cabeça em honra ao nosso povo. Hoje, nos pediram para trazer alguma ajuda com comida para os soldados. Em duas horas, carregamos uma van cheia de comida, apenas da nossa vila.”

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Há bravura, mas também há grande medo. Parado na estrada no escuro, a prefeita apontou para uma estrela no céu que parecia estar se comportando de forma estranha, preocupada que pudesse ser um drone russo.

Coquetéis molotov preparados por moradores do vilarejo de Hushchiintsi, no centro da Ucrânia, e deixados para o uso dos voluntários Foto: Brendan Hoffman/The New York Times

Serhii Osavoliuk, que se inscreveu para o serviço de patrulha, disse que sua esposa logo seguiu o exemplo. “Minha esposa, provavelmente pensando em me controlar, também se alistou”, disse ele. “Agora patrulhamos juntos.” A dupla anda com lanternas, parando carros e verificando quem está dentro. Normalmente, são apenas locais.

Cenas como essas se repetem em vila após vila pelo campo. Centenas de moradores locais ajudaram a construir fortificações, trazendo grandes sacos de suas casas e enchendo-os de areia.

Muitos dos civis que fazem trabalho de apoio, como Osavoliuk e sua esposa, estão desarmados, embora alguns tenham armas ou as tenham pedido. Mas parece que todos estão fazendo o que podem, esperando que mesmo pequenas ações possam ajudar.

A agência nacional de estradas da Ucrânia, por exemplo, emitiu uma ordem para derrubar todas as placas de trânsito – para dificultar a navegação das tropas russas.

Na estrada entre as cidades de Vinniitsia e Kaliinivka, o processo já havia começado, trazendo mais uma nova cena estranha ao lado de estradas familiares.

O sinal para a vila de Piisarivka desapareceu em apenas cinco minutos. Volodmir, um trabalhador do serviço rodoviário, que tem 55 anos e não quis fornecer seu sobrenome por motivos de segurança, disse que estava dirigindo por aí derrubando placas. “É importante que eles se percam”, disse ele sobre os russos.

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Em Kaliinivka, que fica perto de um grande depósito de armas que as tropas russas atacaram, voluntários locais teceram pequenas tiras de tecido para formar uma rede de camuflagem improvisada sobre seu posto de controle. 

Voluntários tecem com as mãos uma camuflagem para militares em um depósito de armas ucraniano em Kaliinivka Foto: Brendan Hoffman/The New York Times
Dezenas ajudam a fazer uma camuflagem para um depósito de armas em Kaliinivka, na Ucrânia; 'Viemos ajudar nossos soldados', diz uma voluntária Foto: Brendan Hoffman/The New York Times

Muitas pessoas estão se aglomerando ao redor do local, disseram eles, tornando-o um alvo em potencial. O local que eles escolheram é próximo a um abrigo antiaéreo, para se esconder se as bombas começarem a cair. “Viemos ajudar nossos soldados”, disse Valentina Rudenko. “É difícil acreditar que isso está acontecendo conosco.”

Recrutamento de civis

Em alguns lugares, como em Hushchiintsi, o esforço voluntário abrangeu toda a cidade. Cerca de 50 pessoas empilhavam toras em bunkers improvisados, enquanto as crianças corriam e as mulheres faziam refeições caseiras.

“Afaste-se, você pode se machucar, esse é o trabalho dos adultos”, disse um homem às crianças que esperavam participar.

A praça da cidade perto de um centro de recrutamento militar em Kaliinivka estava cheia de homens com mochilas, e também suas esposas e filhos que vieram se despedir.

Sentavam-se em tocos de árvores e em suas sacolas ou ficavam em grupos brincando. Seus filhos ficaram entediados durante a longa espera de seus pais para receber uma arma e instruções.

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Quem estava esperando já havia se cadastrado e veio pronto para se posicionar. Mas também havia recém-chegados a cada minuto no portão de entrada da praça, perguntando aos guardas onde deveriam ir para se alistar.

Entre eles estava Volodmir Varchuk, 67, que subiu em uma bicicleta muito velha. “Ei pessoal, como faço para me alistar?” ele perguntou. Os soldados se entreolharam e perguntaram sua idade. Quando Varchuk falou, um soldado lhe disse para ir embora e esperar até ser chamado.

Varchuk saiu desapontado. “Os jovens serão enviados para lutar, mas nós, os velhos, somos os que devemos guardar a cidade!” ele disse. “Eu sabia que isso aconteceria desde 2014, já tínhamos uma guerra com a Rússia, é óbvio que eles iriam querer continuar.”

Civis e militares voluntários aguardam em fila em depósito de armas em Fastiv, na Ucrânia, para receber equipamento e lutar contra a invasão da Rússia Foto: Brendan Hoffman/The New York Times
Ucranianos rezam na Igreja ortodoxa de São Paraskeva, no vilarejo de Kaliinivka, à espera de tropas russas Foto: Brendan Hoffman for The New York Times

As pessoas estavam entrando e saindo do centro de recrutamento, com sacos de comida, água, roupas. Uma mulher com dois filhos que pareciam ter cerca de 20 anos os levou para um banco e os fez sentar. Então ela os ajudou a experimentar os sapatos novos que ela havia comprado para eles.

Um homem mais velho chamado Viktor veio se despedir de seu filho. “Minha alma está em pedaços”, disse ele. “Como você se sentiria enviando seu filho para a guerra?”

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