‘Na Venezuela há uma degradação, mas não o fim da democracia’

Filho do ex-presidente Raúl Alfonsín, deputado da coalizão que elegeu Macri apoia vigilância, mas não a suspensão de Caracas do bloco criado por seu pai

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Por Rodrigo Cavalheiro CORRESPONDENTE e BUENOS AIRES
Atualização:

Raúl Alfonsín comandou a transição democrática argentina entre 1983 e 1989. Quando deixou a presidência, a hiperinflação era compatível com sua impopularidade. Morto em 2009, hoje é modelo de estadista para adversários políticos. Uma fama conquistada pelo perfil conciliador e por compartilhar com José Sarney a paternidade do Mercosul, em 1985.

O deputado Ricardo Alfonsín é outro filho de Raúl e o fato de serem idênticos o coloca em situações embaraçosas. Milita no mesmo partido, a União Cívica Radical (UCR), legenda social-democrata que integrou a coalizão que elegeu Mauricio Macri presidente. No início, Alfonsín foi contra. Depois, mudou de opinião. A seguir, trechos da conversa com o deputado com o Estado

Ricardo Alfonsín, da UCR, filho de Raúl Alfonsín, no gabinete do pai Foto: RODRIGO CAVALHEIRO/ESTADÃO

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O sr. concorda com a promessa de Macri de pedir a suspensão da Venezuela? Há um processo de degradação da democracia na Venezuela, não anulação ou fim. A qualidade da democracia está sendo afetada. Não devemos iniciar tensões no Mercosul por conflitos locais. 

Macri está só pressionando? É preciso ter cuidado com a Venezuela, pois processos de anulação da democracia são precedidos da degradação. Temos de ser úteis e a melhor maneira de fazer isso é com equilíbrio. 

Se a Argentina pedir a suspensão, a tensão com o Brasil pode prejudicar o bloco? As melhores intenções às vezes podem produzir efeito contrário. Para preservar o Mercosul e defender a democracia, é preciso agir juntos. Nossa coalizão está integrada por forças políticas diferentes e, em algumas questões, há diferenças. 

A sr. errou ao não querer seguir a coalizão no início? Não sabia que com o PRO (partido de Macri) teríamos coincidências programáticas importantes. Houve uma mudança importante no PRO que o tornou compatível com a nossa identidade, que poderia ser chamada de social-democrata. A posição sobre as Aerolíneas Argentinas (aceitou a estatização feita pelo kirchnerismo), previdência social, aposentadorias. Se houver mudança nessa linha, reclamaremos. 

Como fazer esse controle? Ninguém terá maioria no Congresso. Temos mais deputados que o PRO. Tudo depende de acordo, mesmo com peronistas.

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Macri terá problemas para terminar o mandato? Comparam Macri com a experiência da Aliança (união formada em 1999 que venceu o peronismo, mas se dissolveu com a crise de 2001). O contexto nacional e internacional é outro. Não existe a bomba de tempo da paridade com o dólar, que não dava para desativar. Não temos o endividamento que havia. Os juros de hoje também são diferentes. 

O peronismo diz que a crise foi detonada pela falta de coesão da Aliança, o sr. concorda? Se há um grupo que não tem coesão é a Frente para a Vitória (liderado pelo kirchnerismo, cujo candidato, Daniel Scioli, foi derrotado por Macri). Depois de 2003, o preço dos produtos primários foi às nuvens, não foi mérito nosso. Quando se ativou a indústria primária, ativou-se o país. Não houve industrialização, mas uso da indústria ociosa. Criou-se o mito de que só os peronistas podem governar. Eles desperdiçaram uma grande oportunidade. Preços das commodities e petróleo altos, taxas de juros negativas em alguns casos, um mundo que precisava dos nossos produtos. 

O que deveriam ter feito? A economia crescia a ritmo chinês, crescia a arrecadação. Mas não modificaram a matriz produtiva, não fizeram reforma tributária, não investiram no interior, nem infraestrutura para não depender sempre do câmbio. Banalizaram a ideia de justiça social. Não é ruim estimular o consumo, mas melhorar a educação e a saúde não era incompatível. São partidos populistas que pensam só no curto prazo. Ou melhor, pensam nas eleições e as eleições são sempre no curto prazo.

A ideia de que o peronismo quando não está no poder torna a vida do adversário um inferno é verdadeira? Sim, mas não sei se isso é tão excepcional. Os argentinos têm a mania de exagerar suas virtudes, o que nos rendeu bastante antipatia na América Latina, mas também os seus defeitos. Isso ocorreu porque havia contextos que permitiram essa atitude irresponsável. Nos anos 80, fizeram 13 ou 14 greves, mas a situação econômica era complexa. Fizeram o mesmo em 1999. Mas, se houver crescimento econômico, será difícil agir desta maneira, porque isso os afastaria mais do poder. Minha única dúvida é com a relação de força no Parlamento (o peronismo tem maioria no Senado e a maior bancada na Câmara), mas é preciso denunciar se forem destrutivos.

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A coalizão Cambiemos votará unida sempre? Não voto nem com meu partido se não acreditar no projeto. Se o presidente apresentar amanhã um projeto que prevê a pena de morte, não voto.

Há um pacto implícito para não condenar ex-presidentes?  Temos de deixar a Justiça agir com independência e isso não é tão difícil. Não precisamos de investimentos, que o Brasil melhore sua situação e possa comprar mais aqui, não é preciso que baixem as taxas de juro ou a inflação. Basta garantir a independência dos poderes.

Quando seu pai deixou o poder, havia hiperinflação e instabilidade social, mas quando assumiu Carlos Menem (1989-1999), a transição foi civilizada. Por que isso agora é tão difícil? Tem a ver com a personalidade do meu pai. Menem tinha sido irresponsável. Fez de tudo para que o governo deixasse o poder antes, para que chegássemos ao fundo do poço. Assumiram com uma crise que fez a população aceitar políticas que em outras circunstâncias não teria aceitado, políticas neoliberais. Meu pai deve ter ficado irritado. Ainda assim, conversou, deu informações, se dispôs a ajudar em algumas iniciativas necessárias para resolver o problema. Isso se faz em qualquer lugar, só aqui não.

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O cenário é muito menos complexo e não parece haver essa boa vontade, por quê? É uma questão de valores. Cristina não tem convicções republicanas. Ela não tem o direito de fornecer a informação, tem a obrigação moral e política. Esse governo, além de autoritário, é perverso.

Seu pai deixou o poder em 1989 com hiperinflação, mas ganhou a imagem de estadista modelo. É até usado politicamente. Como ocorreu a transformação? O tempo permite ter uma perspectiva diferente. Compreenderam que o objetivo então era terminar com a ditadura. Viram que a situação interna era muito complexa. Os juros eram altíssimos, ninguém comprava nossos produtos, a dívida era imensa. Alfonsín não dividiu a sociedade, não agiu com espírito de vingança. 

O tempo pode tratar Cristina com a mesma generosidade? Não acredito. Essa divisão social tende a diminuir com o tempo, mas não acredito que vá contar com o carinho que destinaram ao meu pai. Esses dias parei para atravessar a rua num semáforo. Uma senhora virou rápido para mim e deu um salto. Achou que eu era meu pai e começou a chorar. Tomara que Cristina tenha algo parecido. Mas espero que não perdoemos os erros para não repeti-los. 

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