Nascer de novo aos 60 anos, formado numa escola com grades

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Por Cenário: Ricardo González Alfonso e NYT
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Nunca imaginei que nasceria aos 60 anos, a milhares de metros acima do Atlântico. Não é bobagem. Foi assim que me senti quando fui libertado em Cuba e enviado para o exílio na Espanha. Minha estreia como prisioneiro político foi em 2003, durante a Primavera Negra. Fui um dos 75 cubanos detidos por acreditar que a liberdade é um milagre possível, não um crime contra o Estado. Dizem que a prisão é uma escola. É verdade. Esforcei-me para ser um bom aluno. Meu sucesso foi tanto que meus colegas de cárcere acham que sou corajoso. Em questão de meses tornei-me capaz de me guiar com precisão pelos labirintos de almas naufragas. Aprendi os segredos de assassinos de aluguel, crimes passionais, traficantes e aspirantes a imigrantes, cuja partida clandestina não fora um segredo para o Estado. Zoologia era uma aula que tínhamos todos os dias. Aprendi a conviver com ratos e a encará-los com uma urgência não muito diferente daquilo que as pessoas chamam de apetite. Fui um amigo solitário para as aranhas que, às vezes, livravam-me do torturante zumbido e das picadas que acompanhavam minha insônia. Tornei-me bem versado na solidão e no silêncio. Lembro-me de estar numa cela cuja largura não ultrapassava a envergadura de um homem. Também me familiarizei com o fedor da superlotação e coma gritaria incessante. Meses de escuridão infinita. Fui ouvinte em alguns cursos, nos quais aprendi que prisioneiros se especializavam em ferimentos auto-infligidos como solução para o desespero. Testemunhei mãos mutiladas e outros ferimentos mortais. Um homem cortou o próprio pênis e testículos na tentativa de se tornar mulher. Outros, mais radicais, buscaram métodos de suicídio, todos eficazes. Uma grande parte do programa de estudo consistia na defesa dos próprios direitos. Não havia opção teórica, somente a prática cubana da greve de fome. Fiz greve de fome por 16 dias, até que parte de minha vontade se sentiu satisfeita com minha vitória. Como em toda escola, havia períodos de descontração. Maços de cigarros apostados em partidas de xadrez, jogos de cartas ou campeonatos de futebol. Conheci vendedores e compradores de drogas recreativas que eram muito bons em subornar agentes penitenciários e prisioneiros informantes. Não faltou experiência em agressões armadas. Facas cegas manuseadas com habilidade que deixavam trilhas de sangue e fúria. Sempre demonstrei aptidão para temas relacionados aos sonhos e sonhei com minha mulher e filhos com tamanho fervor que estou certo de que eles sentiram minhas carícias enquanto dormiam. Fui quase um aluno exemplar e recebi somente uma nota abaixo da média: no curso de ódio. Apesar de certas zonas da memória, não guardo rancor de meus carcereiros. Agora, após meu nascimento na terceira idade, contemplo o futuro com esperança. Sempre otimista, sonho até em voltar a uma Cuba onde a liberdade não seja uma ilusão impossível. Sei que nos próximos 60 anos não terei de renascer novamente. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL O AUTOR É JORNALISTA E DISSIDENTE CUBANO

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