‘Ninguém quer voltar à realidade de antes’

Com experiência em diferentes conflitos no mundo, Harnisch aponta particularidades da guerra civil colombiana

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Por Renata Tranches 
Atualização:

Ainda que o acordo de paz na Colômbia não tenha sido aplicado, para o chefe da Delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha na Colômbia, Christoph Harnisch, os efeitos do cessar-fogo nas regiões onde ocorre o conflito são visíveis. Para essas comunidades, voltar à realidade anterior ao acordo não é uma possibilidade e a expectativa do que ainda pode vir é muito grande. Em visita a São Paulo, ele concedeu entrevista ao Estado

Christoph Harnisch, chefe da Delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha na Colômbia Foto: CICV

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Qual o significado do Nobel da Paz nesse momento?  É preciso observar que a Colômbia, desde 2010, vive um processo de paz, com muitos esforços. Há discussão pública, nas grandes cidades, no campo, sobre se será possível chegar a uma paz desta vez. Por isso, a dimensão internacional nesse conflito é tão importante. Acredito que o esforço feito para se chegar a um resultado merece reconhecimento. Temos um papel particular, humanitário, de facilitação das negociações desde o início. Mas também temos uma posição de observação. O que posso dizer é que os esforços, a energia de todos esses negociadores para se alcançar um acordo não só é surpreende, mas merece admiração. Eles realmente sacrificaram suas vidas privadas para chegar a isso. É também uma importante mensagem às pessoas afetadas pelo conflito de que não estão sozinhas. Que seja o presidente ou outra pessoa (a ganhar o Nobel), isso não importa tanto. O que importa é a mensagem de que valeu a pena chegar até aqui e vale a pena continuar. Já podemos observar os efeitos de um cessar-fogo bilateral e definitivo, a diferença que isso já fez onde ocorreu o conflito é fenomenal. 

O que se pode observar?  Há ganhos. Essa é uma população que vive em uma situação de hostilidade, de encontro com militares há 52 anos. Há uma mudança de realidade e a expectativa do que virá é muito grande. Essas populações têm dificuldades de acesso aos serviços do Estado, que não chegam. Não há escola com bons professores e recursos, não há um centro de saúde, e tudo isso influencia a expectativa das pessoas. Os colombianos, como muitos povos que conheci em situação de guerra, estão muito contentes com o fim do conflito ativo. Mas agora precisam se desenvolver. 

O governo afirmou que o cessar-fogo valerá apenas até o dia 31 deste mês. Isso preocupa a Cruz Vermelha?  Acredito que ele será prorrogado porque não há ninguém que realmente queira voltar à realidade de antes. Para muitos, o resultado do plebiscito foi uma surpresa. Agora, há uma discussão política muito difícil para determinar o que se pode fazer para continuar. A ideia da discussão não é regressar à guerra, mas como identificar alguns pontos para levar esse processo adiante. Um contexto de cessar-fogo bilateral é o melhor possível. Entendo que o prazo inicial declarado pelo presidente, de 31 de outubro, é uma forma de dizer que essa discussão não vai se prolongar por anos e anos. Tenho fé de que essa data será prorrogada. Há uma decisão de 29 de agosto que é a de um cessar-fogo bilateral e definitivo. É muito importante destacar a dimensão disso, de que não haja estranhamento e movimentos militares. É a primeira vez em décadas que alguma coisa positiva muda nas vidas dessas pessoas. 

Quais são hoje os maiores desafios humanitários?  Se por um lado há um acordo para o fim do conflito e a construção de uma paz estável e verdadeira com as Farc, por outro, há outro conflito armado não internacional, com o ELN, que continua. E aí há fenômenos de violência, por atores armados e ilegais, grupos armados organizados que continuam atuando. Num país como a Colômbia, há realidades diferentes. O maior problema que temos é a contaminação por armas, há muitas zonas contaminadas por armas, onde a população não pode voltar a viver porque há minas terrestres, artefatos explosivos improvisados e bombas que não explodiram. Isso é o que chamamos de contaminação por armas e é algo que impacta diretamente em muitas partes do país. 

Não é possível saber exatamente onde estão essas armas?  Isso. É preciso localizá-las, retirá-las e destruí-las para dar à população desses municípios a tranquilidade para que possam cultivar nesses campos. E essa limpeza não se pode fazer sem os atores armados, porque são eles que têm conhecimento de onde estão as armas. Esse é um problema humanitário importante. 

Quais são outros? Há diferentes formas de pressão sobre a população, por diferentes atores. Uma delas é a extorsão, atores armados que obrigam as pessoas a pagar por proteção. Outro problema é o desconhecimento da população de seus direitos. Na Colômbia, há cerca de 8 milhões de deslocados desde 1985. Todas essas pessoas têm direitos. Há um marco jurídico em favor delas. Mas, em muitas zonas, elas não sabem disso. Não têm informações. Se as pessoas sabem quais são seus direitos, podem pedir benefícios, ajuda material. E isso tem um impacto claro sobre famílias muito vulneráveis, cujos parentes já morreram ou estão desaparecidos, e sofrem discriminação por viver em regiões próximas das guerrilhas. Há ainda a restrição de movimento por falta de segurança. 

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O sr. tem muita experiência em outros conflitos. O que é único no conflito colombiano? O que é lamentável é o número de desaparecidos. A quantidade de pessoas sobre as quais não se sabe o que aconteceu é muito alto. Falamos de cerca de 80 mil desaparecidos. Isso quer dizer que 80 mil famílias no país não têm conhecimento do que aconteceu com seus parentes. Há um compromisso no marco dos acordos para uma busca ativa de todas essas pessoas ou ao menos de se fazer todo o possível para encontrá-las. Isso ocorre em muitos conflitos que conheço, mas o número na Colômbia é muito alto. A duração da guerra também é uma questão muito complicada. 

Há outras características?  Outra característica é a de ser um país de traumatizados. A necessidade de um apoio psicossocial para muitas pessoas na Colômbia é enorme. Elas precisam de ajuda para simplesmente digerir a dimensão emocional do conflito. Não é algo exclusivo do país, mas é muito forte lá. Isso só poderá começar quando houver a implementação de um sistema de justiça especial, formar uma comissão da verdade e uma forma de restituição ou de reparação. Fazer o que a Alemanha fez entre os anos 50 e 80. Falar do passado, estabelecer responsabilidades e digerir. 

Recentemente, as Farc entregaram um grupo de 13 menores ligados à guerrilha. Qual é a situação dessas crianças no conflito?  É um tema muito controvertido, mas também foi tratado nas negociações em Havana. As partes concluíram um acordo bilateral para resolver o problema dos menores de idade. Primeiro, houve uma divergência de opinião sobre o que é um menor. As Farc diziam até 15 anos e o governo até 18, segundo os protocolos internacionais. Houve uma mesa técnica sobre como seria a retirada e a integração desses meninos na sociedade. Seus pais são da guerrilha?  Nem sempre. São filhos de famílias que viviam muito perto da guerrilha. Nessa primeira operação, houve entrega de 13 meninos de Chocó e Antioquia. Nosso papel foi assegurar que a entrega das Farc se fizesse dentro das regras. Depois, com os meninos, estabelecemos o estado de saúde deles e os levamos a um centro de acolhida temporário, onde organizações como Unicef e outros grupos colombianos fazem um trabalho de preparação para a integração deles. É preciso estabelecer se têm problemas psicológicos e o que eles querem. Para nós, o mais importante é a vontade desses meninos. Eles têm direito a um desenvolvimento normal.

QUEM É:  Ligado ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha desde 1984, o suíço Christoph Harnisch chefia a delegação na Colômbia desde 2014. Seu primeiro posto foi no Líbano. Ele integrou também a delegação em Israel e Territórios Ocupados, em outros países no Oriente Médio e na África. O primeiro posto na América Latina foi na Nicarágua. Harnisch é mestre em diplomacia pela Universidade de Genebra. 

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