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No interior da Venezuela, comida apodrece por falta de gás e cortes de luz

Apesar de gigantescos recursos energéticos, preço subsidiado prejudica abastecimento e governo venezuelano é incapaz de manter população minimamente abastecida para preparar o escasso alimento que consegue comprar

Por Rodrigo Cavalheiro
Atualização:

Com a maior reserva de petróleo do mundo e uma das dez maiores de gás, a Venezuela não consegue manter a população minimamente abastecida para cozinhar a rara comida que consegue. Caracas, onde há gás encanado, é um oásis comparado a cidades como San Cristóbal, no Estado de Táchira, controlado pela oposição. Nesta região da fronteira com a Colômbia, há longas filas para comprar o frango que ficará na geladeira por falta de gás e apodrecerá em razão dos cortes de luz.

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Maria Elena Saez, professora que usa a grelha quando fica sem gás, em Sán Cristóbal Foto: RODRIGO CAVALHEIRO / ESTADÃO

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O botijão de gás de 18 quilos custa 300 bolívares pela tabela, um valor quase sem equivalência em dólar (US$ 0,0003). Na prática, quando o caminhão aparece, o distribuidor vende o produto por 50 mil bolívares (US$ 0,06). O preço é uma das razões para a escassez, mas é impossível subir o valor quando o salário mínimo equivale a US$ 3.

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“Preferiria mil vezes que não fosse subsidiado, mas que o fornecimento fosse regular”, diz a professora María Elena Saez, de 56 anos, que vive em uma montanha a 5 quilômetros do centro da cidade e chegou a ficar dois meses sem gás. Como alternativa, ela usava o fogão elétrico. Como durante os últimos meses houve um sistema de cortes regulares (seis horas com luz e seis sem), ela também usava uma grelha à lenha. 

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“Cheguei a perder quilos de frango quando faltaram as duas coisas, gás e luz, e a lenha molhava”, diz María Elena. Na quarta-feira, enquanto recebia a reportagem em seu pátio, sentada ao lado da grelha apoiada em dois tijolos sob a qual costuma cozinhar para impedir que a comida estrague, o caminhão de gás passou pela rua de terra que dá acesso à casa. “Milagre”, disse.

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Houve correria entre os vizinhos. Seu filho conseguiu um botijão e a aglomeração já provocava alguma confusão, quando a polícia chegou. Quando se imaginava que os policiais colocariam ordem na fila, a surpresa. Eles “apreenderam” três cilindros cheios e os colocaram no porta-malas da viatura. “Mas que sem-vergonha”, balbuciou María Elena.

O frango perdido por falta de energia é produto de luxo para boa parte da população. Se em Caracas há filas de 50 metros para comprar o quilo de frango por US$ 1, em San Cristóbal a situação de desabastecimento é muito pior. 

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Na quarta-feira, o funcionário público José Delgado, de 50 anos, deixava um supermercado do centro da cidade com 4 pacotes de farinha de milho, base da alimentação local, pelos quais pagou 220 mil bolívares (US$ 0,25), preço tabelado. Ele havia ficado 8 horas na fila, com mulher e a filha de 4 anos. “Lá dentro não tem nada. Não tem arroz, não tem azeite. Conseguimos pelo menos farinha”, disse o homem, atribuindo a culpa da crise ao governo de Nicolás Maduro. Nem todos pensam como ele. 

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Oscar Tolosa, de 52 anos, que ainda esperava sua vez sob uma leve garoa, disseque a responsabilidade pela escassez é de um bloqueio internacional liderado por empresários e pelos EUA. “O governo nos manda comida, mas os empresários a escondem. Com o gás é a mesma coisa. Existe gás, só precisamos fazer a fila”, afirmou.

Na escola da qual María Elena é coordenadora, a Unidade Educativa Peribeca, não se sabe se o gás não chega porque já não se distribui a merenda, ou o contrário. Na prática, as aulas passaram a se concentrar no turno da manhã. 

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Dos 25 professores, 18 levam uma arepa (espécie de pastel feito com a farinha de milho) extra para dar de café da manhã aos alunos mais pobres. “Todos os dias algum deles desmaia”, diz a professora. Sua escola tem 359 alunos, dos quais apenas 20% têm comparecido às aulas. 

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Como a energia elétrica também é praticamente gratuita, muitos colombianos que ganham em pesos preferem viver na Venezuela.  Tradicional reduto opositor, Táchira tem como governadora Laidy Gómez, eleita em 2017. O Estado foi um dos poucos a registrar protestos após a reeleição de Maduro, no domingo, em uma votação boicotada pela oposição. “Estamos começando a promover alguns atos”, disse um estudante encarregado de bloquear ruas e atacar postos policiais nas manifestações do ano passado.

Para o economista Asdrubal Oliveros, da consultoria Ecoanalítica, a crise no fornecimento de gás faz parte do colapso dos serviços públicos de forma geral. “Isso tem relação com a queda de investimento na PDVSA (estatal petrolífera) e com tarifas que não podem ser sustentadas de acordo com a realidade do mercado.”

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