Ao menos 20 mil pessoas morrem a cada 24 horas por falta de alimentos. Enquanto isso, 690 milhões não sabem se terão os alimentos necessários até o final do dia. Para reconhecer o trabalho de quem luta para diminuir a fome e a insegurança no planeta, o Prêmio Nobel da Paz de 2020 foi dedicado ao Programa Mundial de Alimentos (World Food Programme, em inglês), a maior agência humanitária das Nações Unidas e o maior programa de combate à fome no planeta.
Com atuação em 88 países e levando alimentos a mais de 100 milhões de pessoas, o WFP foi criado na Assembleia-Geral das Nações Unidas de 1961 e atua em áreas que vão desde o fornecimento direto de alimentos a populações vulneráveis até o auxílio na construção de políticas públicas para reduzir a fome nos cinco continentes.
"O prêmio vem mostrar esse trabalho urgente, importantíssimo, e pode trazer mais recursos (contra a fome)", afirma Daniel Balaban, chefe da agência no Brasil. Segundo ele, quem realmente ganhou com o reconhecimento internacional foram as populações marginalizadas e esquecidas. Abaixo, a entrevista completa.
Qual a importância do Prêmio Nobel da Paz para o World Food Programme?
O mais importante do prêmio é colocar luz em um problema tão importante que afeta o mundo e afeta o Brasil: a fome, a insegurança alimentar e nutricional, o desespero dessas pessoas em busca de sobrevivência. Quem realmente ganhou o prêmio foram essas populações marginalizadas e esquecidas. O WFP só existe para ajudar essas pessoas. É importante que a gente resolva esse problema, que tem solução, mas falta interesse político em agir.
Acredita que a visibilidade conquistada pelo prêmio pode ajudar o WFP a obter mais recursos?
Esse prêmio coloca luz sobre um problema que todo mundo vai ver que existe. Os países vão querer participar mais da solução. É o que eu acredito. O WFP vive de recursos dos países, da iniciativa privada, de fundações, de milionários e bilionários que apoiam. O prêmio vem mostrar esse trabalho urgente, importantíssimo, e pode sim trazer mais recursos. Estamos em um mundo em que 20 mil por dia morrem por fome, 690 milhões em insegurança alimentar. As pessoas precisam notar que é possível resolver isso.
O que falta para resolver essa questão?
Não é possível, no ano de 2020, que tenhamos tanta nanotecnologia, tantos avanços, estamos indo pra Marte, e não conseguimos resolver esse problema que afeta milhões de pessoas em todo o planeta. Quando o mundo se une para resolver um problema, ele resolve. Veja o caso dessa vacina batendo recorde, já na fase final. Nunca tivemos uma vacina em menos de dois anos. Então, está na hora de o mundo ter interesse de acabar com a fome. Esse Nobel veio para ajudar isso, para mostrar que dá para resolver esse problema.
É preciso de interesse político e das populações. São elas que influenciam nas tomadas de decisões.
O Brasil é um país reconhecido internacionalmente pelas políticas públicas de combate à insegurança alimentar. Ao mesmo tempo, o IBGE mostrou que 10 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar grave. O Brasil pode voltar ao Mapa da Fome?
Se não voltar a vigiar e colocar esse problema na pauta do dia a dia, nós vamos, infelizmente, ter o país vergonhosamente de volta ao Mapa da Fome. Não podemos. Somos a nona economia do mundo, somos um dos maiores exportadores de alimentos do mundo. Não podemos ter nenhuma pessoa no nosso país que não tenha o que comer. Isso é obrigação do governo, dos Estados, dos municípios e dos cidadãos.
Como o histórico do Brasil pode ajudar o país a superar o problema?
Orai e vigiai. Esse é o Brasil. Criamos políticas públicas sustentáveis de combate à fome e à pobreza mostrando que é possível conseguir diminuir esse número de pessoas vulneráveis. Chegamos a praticamente 1% da população em insegurança alimentar e nutricional, mas voltou a crescer nos últimos cinco anos.
Isso aconteceu por falta de interesse e manutenção dessas políticas. E aqui entram todos os envolvidos: governos federais, estaduais, municipais e a população, que parou de se preocupar com esse tema e parou de influenciar o debate público. Quando não influencia, as políticas perdem espaço, principalmente no orçamento. E sem orçamento não há política.
O Brasil, um dos maiores produtores de alimentos do mundo não pode ter pessoas dentro do seu território passando fome
Falando de forma global agora. São 690 milhões de pessoas em insegurança alimentar no planeta, mas não falta comida. Qual o problema?
O mundo produz comida para alimentar toda a população com várias refeições ao dia. O problema é que os alimentos não chegam aos mais necessitados. Por isso, trabalhamos com a criação de sistema alimentares para que os alimentos sejam canalizados diretamente para os que necessitam. O Brasil desperdiça um terço dos alimentos que produz.
Só isso seria capaz de alimentar milhões de pessoas em várias partes do mundo. Imagine o desperdício em outros países. Então, a questão é fazer com que os alimentos cheguem a todos que necessitem, que evitemos as perdas, que consigamos ajudar os pequenos agricultores familiares, que são a base de sustentação da produção.
Após receber o prêmio, o WFP afirmou que fome e paz são indissociáveis. Qual é a relação?
Sem paz não existe fim da fome no mundo. Locais onde há fome estão totalmente suscetíveis a conflitos armados porque a fome leva à desesperança. É muito fácil conseguir levar essas pessoas para conflitos. Pegue o caso de uma criança que viu o pai, a mãe, o irmão morrer, que a família está passando fome. Você dá uma arma para ela, chama para entrar em um exército de libertação, em uma milícia, e ela se empodera.
A fome leva a conflitos. Dificilmente há conflitos e guerras em países que não há fome. Por isso, vale mais a pena os países investirem no combate à fome do que em aumentar seus arsenais de guerra.