NOVA ESPERANÇA PARA OS MORADORES DE MARIEL

Porto vem sendo renovado com dinheiro do Brasil, mas cidade teme marasmo econômico

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Por Rodrigo Cavalheiro e CUBA
Atualização:
Um ano após a inauguração da primeira fase do porto, moradores de Mariel ainda não viram melhora na infraestrutura da cidade Foto: Rodrigo Cavalheiro/Estadão

Em 1980, 125 mil cubanos fugiram em barcos precários para os EUA, no que ficou conhecido como Êxodo de Mariel, o maior da história de Cuba. Morreram 27. Pela mesma cidade, conhecida pelo porto a 44 quilômetros de Havana (ou uma hora e meia de carro), o regime cubano espera que entrem os bilhões capazes de fazer seus cidadãos esquecerem a obsessão pelo exílio. Um ano depois de inaugurada a primeira fase da obra com financiamento brasileiro, entretanto, os moradores reclamam que a cidade destinada a salvar a pátria não consegue renovar nem sua própria economia e infraestrutura.

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"A única coisa que abriu aqui nos últimos anos foi 'La Cañita'", reclama o aposentado Luis García Pérez, de 60 anos, referindo-se à discoteca animada por grupos de reggaeton. "A população já está protestando porque esperava ser beneficiada e nada ocorreu. A reaproximação com os EUA deve melhorar o movimento no porto", diz, mostrando, em frente à praça central - onde está sendo construído um monumento a Che Guevara -, as quatro gruas de até 80 metros instaladas do outro lado da baía.

A esperança de García é compartilhada por quem trabalha no porto e ainda não viu o projeto engrenar. David Rodríguez Mayol opera desde agosto empilhadeiras de contêineres. Começou em 1987, no antigo porto da cidade, ainda em operação. Antes de ser aceito no investimento mais importante do governo de Raúl Castro, passou por nove meses de treinamento. "O problema é que ainda não está em pleno funcionamento. Esta semana, por exemplo, trabalhei só um dia. Dizem que em março chegará uma carga grande", comenta.

Rodríguez ganha um salário do governo equivalente a US$ 12,5. No dia a dia, é pago por produtividade: cada contêiner transportado garante US$ 0,08, o que deixa seu rendimento mensal em US$ 80. "Ainda é pouco, mas é mais do que eu ganhava no porto antigo. Dá para pagar a comida", afirma Rodríguez, que tem em casa mulher, dois filhos, e lamenta a ausência de um carro - um Lada com 20 anos, por exemplo, custa US$ 14 mil.

A razão principal para a frustração dos marielenses é que, embora a inauguração tenha ocorrido há um ano com a presença da presidente Dilma Rousseff e de outros chefes de Estado, foi entregue só a primeira parte da obra, 700 metros de cais com capacidade para grandes navios. Quanto concluído, o novo terminal terá capacidade de movimentação de 1 milhão de contêineres por ano, três vezes mais do que a do Porto de Havana, que servirá só ao turismo. Segundo a Odebrecht, uma das empresas encarregadas da obra, foram investidos US$ 957 milhões, sendo US$ 682 milhões financiados pelo BNDES. A parte mais rentável do porto, a exploração da carga e descarga dos navios, ficará com Cingapura.

Foram envolvidas na primeira etapa da obra 400 empresas brasileiras. Elas esperam ter vantagem ao competir nas outras etapas de modernização do porto, que inclui uma zona especial de desenvolvimento econômico semelhante às chinesas. A segunda etapa contará com mais US$ 290 milhões do BNDES para ampliação dessa região especial, onde as empresas poderão ter capital 100% estrangeiro e contarão com incentivos fiscais. Em regra, investidores estrangeiros em Cuba precisam estar ligados a um cubano que seja o sócio majoritário. "O objetivo da zona especial é criar um clima onde o capital estrangeiro terá melhores condições do que no restante do país", disse o ministro do Comércio Exterior do regime comunista, Rodrigo Malmierca, em Pequim, em setembro. Segundo Diego Moya-Ocampos, analista de risco econômico da consultoria britânica IHS, o objetivo da maior da obra é "estabelecer um porto em uma área de intercâmbio especial e internacional diante da Flórida, com perspectiva de reestabelecer o comércio quando o embargo acabe". Para analistas, a sincronia entre a ampliação do porto e reaproximação com os EUA não é a única "coincidência". Em 2015, a ampliação do Canal do Panamá deve ser concluída e a Venezuela, da qual Cuba recebe petróleo, tende a ver sua economia mais debilitada, o que forçará o regime a diversificar parceiros. A localização é uma das vantagens de Mariel sobre portos vizinhos, como os da Jamaica, da República Dominicana e do Panamá (que já têm zonas com leis especiais para atrair investidores). São 200 quilômetros até a Flórida, o que deve estimular empresas a se instalar em Cuba e aproveitar salários baixos para exportar para os EUA - isso exigiria o fim do embargo iniciado em 1960. Hoje, navios que atracam em Cuba devem esperar seis meses para aportar nos EUA, uma das razões para que faltem contêineres em Mariel. Espera-se que, com a operação plena da zona especial, o cenário mude. Outro trunfo dos cubanos é o elevado nível educacional. Os operários têm alta capacidade de especialização, por terem em geral terminado o ensino médio. Entre as desvantagens mencionadas por investidores estão a burocracia e a interferência estatal no repasse dos salários. Como intermediário, o governo fica com parte do que os estrangeiros desembolsam por um operário. "Meu salário aumentou com as obras do porto, mas poderia ter subido até 60% se o governo não tivesse levado a metade", reclama o eletricista Miguel Hernández, de 50 anos, que ganha US$ 97 por mês - o salário médio no país é de US$ 20.
Embora os salários em Mariel sejam maiores que a média nacional, moradores ironizam problemas com esgoto, iluminação e buracos nas ruas. Dizem que o único benefício com ampliação - além da discoteca "La Cañita" - foi a pavimentação da principal "artéria" do povoado de 48 mil habitantes. "Estavam com o asfalto pronto para colocar na estrada do porto, mas como ela não ficou pronta a tempo, jogaram na rua principal", conta o operador de grua Roberto Carlos Fernández, de 51 anos, que resolveu continuar no porto antigo de Mariel, após passar pela especialização de nove meses. "Minha vista não é tão boa. Olhar 60 metros do alto da grua não é para qualquer um. Qualquer erro ali mata", afirma o operário, que preferiu "em nome da segurança" a remuneração de US$ 20.

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